domingo, 27 de agosto de 2023

O santo, o noviço e o asno

A maledicência. Detalhe de 'Cristo ante Pilatos', Hieronymus Bosch (1450 — 1516)
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs




Houve um santo religioso que conhecia bem as coisas do mundo e havia percebido que nele não se podia encontrar quem não falasse mal dos outros.

Um dia, disse a um noviço:

— “Meu filho, pega nosso burrinho e vem comigo”.

O obediente mongezinho pegou o asno. Nele o velho religioso montou, seguido pelo jovem, que caminhava atrás. Enquanto iam entre as pessoas, atravessaram um local cheio de lama.

Então, alguém disse:

— “Olha isso! Quanta crueldade contra esse mongezinho que vai a pé. Deixá-lo andar entre tanta lama! E o velho vai a cavalo!”

Assim que o santo ouviu essas palavras, desceu logo do animal e pôs sobre ele o jovem monge. E andaram mais um pouco, com ele por trás guiando o asno no meio do barro.

Então apareceu outro que disse:

— “Olha que coisa estranha esse homem no animal! É o velho que deixa o jovem andar no cavalo sem se cuidar da fatiga e da lama. Você não acha que é uma loucura? Até que os dois poderiam ir sobre esse asno, se quisessem. Agiriam melhor!”

Então o santo religioso montou na garupa. E assim prosseguiram até aparecer outro e dizer:


— “Mas olha, esses que vão acima do pobre burrinho! Os dois montaram nele? Você não acha que eles não têm pena do coitado do burrinho, e que não seria estranho que ele acabasse desmaiando?”

Ouvindo isso, o santo sacerdote desceu logo e fez desmontar o jovem, e os dois seguiram a pé dizendo:

— “Vamos lá!”

Tendo andado mais um pouco, outro falou:

— “Meu Deus! Olha a loucura desses dois, que têm o asno, mas vão caminhando pelo lodo!”

E tendo o santo religioso visto isto e percebido que no mundo não havia pessoa que não ficasse murmurando, disse ao jovem monge:

— “Chega! Voltemos para a nossa morada”.

E tendo chegado até suas celas, o santo disse:

— “Vem cá, meu filho, você pensou na lição do asno?”

E o jovem monge disse:

— ”No quê?”

São Bernardino de Siena, autor de muitos contos morais. Pintor anônimo espanhol
São Bernardino de Siena, autor de muitos contos morais.
Pintor anônimo espanhol
— “Não viste que de qualquer jeito que nós fôssemos falavam mal de nós? Se eu ia montado e você a pé, falavam mal de nós porque você é jovem e eu devia te proteger.

“Desci, coloquei-te na sela e outro também falou mal de nós, dizendo que eu sou velho e devia montar, e tu, que és jovem, devias caminhar.

“Também montamos os dois e ainda falaram mal, dizendo que éramos cruéis com o burrinho pelo excesso de carga. E ainda quando nós dois descemos, também murmuraram porque era loucura nossa andar a pé em vez de montar o jumento.

“Meu filho, guarda bem o que eu te vou dizer.

“Saibas que aquele que está no mundo fazendo todo o bem que pode fazer e que se empenha em fazer tudo o que lhe é possível de bom, não pode evitar que falem mal dele.

“Então, meu filho, não te incomodes com eles, nem ouças o que dizem, nem tenhas vontade de andar no meio deles, porque, seja como for, sempre se acaba perdendo, porque deles não sai senão pecado.

“Mas, não te incomodes com eles e faz sempre o bem. Deixa-os dizer o que bem entendem, falem bem ou falem mal”.



(Autor: São Bernardino de Siena, “Apologhi e Novellette”, Intratext). 


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domingo, 20 de agosto de 2023

São Francisco, o frade orgulhoso e o enviado de Deus


Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
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No tempo de S. Francisco de Assis vivia um frade que achava estar à altura da inteligência de um anjo.

Aconteceu que um dia São Francisco estava rezando na floresta, quando um jovem veio até a porta do mosteiro e começou a bater bem forte, por tanto tempo, que os frades surpreenderam-se com o barulho. Um deles foi até a porta, abriu-a e disse ao jovem:

— Obviamente você nunca esteve aqui antes, pois não sabe como bater em nossa porta adequadamente.

— Como então devo bater?

— Bata três vezes lentamente, então espere até que os frades possam dizer um Padre Nosso. Se ninguém vier, bata novamente.

— Estou com muita pressa, por isso bati tão forte. Envie-me Frei Elias, pois eu lhe farei uma pergunta. Ele é muito sábio.

Frei Elias ficou ofendido com o modo do pedido, e não queria ver o jovem. Novamente ele começou a bater, tão alto quanto antes. Mais uma vez o frade foi até a porta, e disse:

— Você não observou minhas instruções de como bater.

— Frei Elias não virá. Vá até a floresta e diga a Frei Francisco para enviar-me Frei Elias.

Quando Frei Elias soube desta ordem, foi até a porta com grande fúria, e abrindo-a com violência e barulho, disse:

— O que você faria?

— Tome cuidado, Frei Elias — respondeu o jovem —, pois a ira atrapalha a alma e encobre a percepção da verdade.

O jovem fez então a Frei Elias uma pergunta muito difícil, sobre uma das regras do mosteiro.

— Eu sei bem a resposta — respondeu Frei Elias com raiva. Mas na verdade não sabia respondê-la, e bateu a porta na face do jovem.

São Francisco, a quem todos esses acontecimentos tinham sido revelados, repreendeu severamente Frei Elias, dizendo:

— Deveis estar doente, Irmão Elias, pois expulsais anjos que Deus nos envia para nos ensinar. Pois eu vos digo que temo muito que vosso orgulho vos fará acabar os dias fora da ordem.

E assim aconteceu, como São Francisco havia dito.



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domingo, 13 de agosto de 2023

O padre que deixou sua sombra no inferno

O diabo Cherren, bruxo e mentiroso, havia estabelecido seu trono no inferno. Codex Gigas, f. 290r., século XIII, Bohemia (Biblioteca Nacional da Suécia, Estocolmo)
O diabo bruxo mentiroso Cherren fixou seu trono no inferno.
Codex Gigas, f. 290r., século XIII, Bohemia
(Biblioteca Nacional da Suécia, Estocolmo)
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
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O diabo Cherren, bruxo e mentiroso, havia estabelecido seu trono no inferno.

Ali ele explicava sua ciência mágica a vários discípulos, entre os quais assistiam Dom Juan de Atarrabio e o frade de Bera.

Por um certo tempo ele ensinava gratuitamente, e quando já estavam instruidos, pedia como pagamento por suas doutrinas que um deles ficasse no inferno.

Para realizar esse desejo, eles deveriam concordar e decidir quem iria ficar.

Ninguém ficou voluntário para morar no inferno, e todos alegaram a necessidade de voltar para a terra, onde seus parentes os aguardavam.

Terminadas as aulas, o diabo novamente exigiu que um deles ficasse.

Mas, fingindo-se distraídos, saíram do inferno em fila, por uma porta estreita, e o diabo, na saída, agarrou-os, perguntando um a um:

“Você fica?” Todos lhe respondiam muito alarmados: “Pegue aquele que vem atrás de mim.”

Atarrabio saiu por último, e quando foi apanhado pelo demónio, disse-lhe, como os anteriores: “Agarra aquele que vem atrás.”

O demônio, vendo uma sombra, e tomando-a por outro aluno, nela mergulhou sua espada, deixando a sombra de Atarrabio cravada no chão pelo poder do demônio, enquanto ele escapava sem ela.

Atarrabio terminou sua carreira como sacerdote e foi enviado para cumprir sua sagrada missão na paróquia de Goñi; mas continuou sem sombra, pois a tinha deixado no inferno.

Mas, a partir desse momento, ficou sem ela novamente, o que preocupou muito Atarrabio, que não queria morrer e aparecer sem sombra no outro mundo.

O padre morava com a mãe, já idosa, e uma tarde quando ela ia tirar uma soneca, viu que o céu começava a escurecer, cobrindo-se de nuvens negras que ameaçavam uma chuva de granizo.

Atarrabio disse à mãe: “Se você vir as nuvens chegando, me chame antes que comece a trovejar.”

Mas a mãe se descuidou e o acordou tarde, quando a nuvem já estava sobre a cidade, e os aldeões, muito assustados que caisse pedra em seu trigo, que naquele ano estava muito viçoso.

O padre vestiu-se às pressas e foi para o campo, levando na mão um livro de bençaos e uma cruz para afastar o tempo nublado.

O diabo apareceu entre duas nuvens negras e disse: “Olha que belos cavalos tenho para estragar o teu trigo.”

Ao que o padre respondeu: “olha que freios bons para domar teus cavalos”.

O padre começou a ler os feitiços contra a nuvem no livro ritual que trouxe do inferno, desviando-a da cidade e fazendo-a descarregar, perto do cemitério, em um campo onde havia muitos barris, que estavam cheios de pedras.

Ele soube outro dia, por inspiração divina, que o Santo Padre estava em grave perigo, lidando com algumas pessoas perversas, e que precisava de sua ajuda.

O Pe. Atarrabio mantinha relações com os demônios em sua paróquia. (Frei Jacobus). Cúpula no mosaico do Baptistero de São João, Florença
O Pe. Atarrabio se relacionava com os demônios em sua paróquia.
(Frei Jacobus). Cúpula no mosaico do Batistero de São João, Florença
Atarrabio chamou três demônios que viviam em sua paróquia, para comparecerem em sua casa.

Eles foram imediatamente à sua convocação e ele perguntou quanto tempo levaria para transportá-lo para Roma.

O primeiro respondeu que o levaria dentro de um quarto de hora, o que pareceu muito tempo ao padre; o segundo disse que levaria cinco minutos, e o padre também não aceitou, e o terceiro disse que levaria em um momento, e ficou com ele.

Ofereceu-lhe como pagamento da viagem, que lhe desse a flor da sua refeição, e o diabo aceitou.

E montado nele, se elevou no ar.

Ao passar sobre o mar, o diabo tentou jogá-lo na água para afogá-lo e disse-lhe: “Qual é esse doce nome que vocês, cristãos, pronunciam?”

Atarrabio, para toda a resposta, disse: “Cala-te, diabo.”

Ele chegou às portas do palacio do Pontífice; mas os guardas não o deixaram entrar.

Por mais que insistisse ele teve que se contentar em entregar uma varinha a um criado, incumbindo-o de medir com ela a mesa do Papa.

A varinha tinha uma cruz e, ao entrar na sala com ela, os personagens sinistros, que eram demônios, desapareciam.

O Papa perguntou quem havia lhe dado aquela vara e ordenou que o padre entrasse.

Mas quando o criado saiu para chamá-lo, Atarrabio já havia saído e estava a meio caminho de sua aldeia.

O padre ficou presa do desespero.
Lúcifer segundo uma gravura do Codex Altonensis,
Bibliotheca Gymnasii Altonani (Hamburg), século XIV
Ao chegar em casa, tirou o manto coberto de neve e disse à mãe que nevava na serra da Jaca.

A mãe não acreditou e Atarrabio disse-lhe: “É tão verdadeiro como o galo assado que tens para comer corvos.” E logo o galo que estava na panela começou a levantar-se e a cantar.

O padre ordenou à mãe que lhe preparasse comida com dez nozes, e as cascas foram dadas ao diabo como pagamento por levá-lo a Roma.

Só a recuperou quando celebrou a santa missa, no momento solene da consagração, enquanto elevava o Santíssimo Sacramento. Foi assim.

Porém, vendo que não conseguia recuperar a sua sombra, pediu ao sacristão que o matasse na hora da elevação na missa, e que lhe arrancasse o coração e o pusesse, furado, num pau, à porta da igreja.

Se alguns corvos o levavam, era porque ele havia sido condenado, e se uma pomba o pegava, era sinal de que havia sido salvo.

O sacristão pegou uma grande maça, e enquanto o padre rezava a missa, esperou que sua sombra caísse no chão, e nesse momento crítico desferiu um forte golpe na cabeça, deixando-o caído morto.

Depois, como lhe fora ordenado, tirou o coração, pregou-o num pau, deixando-o à porta da igreja, e ali ficou a ver quem o levaria.

Logo um bando de corvos chegou e começou a voar em círculos sobre o coração.

Mas de repente apareceu uma pomba pequena e muito branca, que se lançou sobre ele, levando-o pelos ares, e o sacristão ainda pôde ver como ela subia ao céu.


domingo, 6 de agosto de 2023

O boi voador de Saint-Ambroix

O boi chamado Caïet salvou a concórdia geral
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
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Há muitos séculos – pois esta lenda se perde na noite dos tempos – a colheita de uvas foi fabulosamente abundante, excessiva demais e verdadeiramente incalculável, em Saint-Ambroix (Santo Ambrósio), na região de Gard, França.

Pelo excesso de uva, não havia mais um recipiente livre na cidade. Era impossível guardar adequadamente todo esse vinho.

O que fazer?

A desavença tomou conta dos habitantes cuja única renda era o fruto da terra.

‒ “Se nós não fazemos algo, vamos perder tudo”, disse um deles.

‒ “Sim, é verdade, o vinho vai estragar”, disse outro.

‒ “É culpa de nosso governante”, disse um terceiro, apontando para a casa do prefeito, chamado Roustan.

‒ “Poderemos engolir todo esse vinho até ficarmos bêbados”, grunhiu um maltrapilho deitado num banco.

O prefeito vestiu-se de gala e anunciou uma festa
Na cidade todo mundo bebia vinho. Mas é preciso ser moderado com essa bebida e a quantidade de vinho era verdadeiramente demais.

Formaram-se grupos de descontentes liderados por um santambrosiano cujo apelido era “Trinco-Puncho”. E a revolta começou a crescer em toda a cidade.

‒ “Eu tenho que achar uma ideia”, pensava o prefeito em face do motim.

‒ “E se nós organizamos uma....”, tentou sugerir sua mulher.

O prefeito pegou suas mais belas vestes e disse:

‒ “Eu tive uma ideia luminosa e extraordinária”, exclamou modestamente em seu belo traje.

‒ “Eu não esperava menos de ti”, acrescentou sua mulher.

O prefeito foi até a Praça de Foiral e, diante da enorme multidão de descontentes, disse:

‒ “Meus amigos, nós vamos organizar uma imensa festa”.

‒ “Esse é bem você! Quem virá à tua festa?”, berrou um peão corpulento.

‒ “Sim, Roberto falou certo, já tem festa em todas as cidades”, vociferou Joana.

‒ “Por que haveriam de vir as pessoas?”, berrou Mimila, mostrando uma faísca de inteligência.

Saint-Ambroix: a produção demasiada de vinho inspirou a curiosa decisão
‒ “Certo, certo, para fazer o quê viria alguém a nossa cidade?”, refletiu nosso prefeito, que não tinha pensado nisso.

Nessa hora, vendo um rebanho de gado atravessar a praça, uma ideia louca assomou em seu espírito.

Lembrando a história do asno de Gonfaron, ele tirou do rebanho um boi chamado Caïet e disse com toda segurança:

‒ “No próximo domingo haverá festa na nossa cidade, e o boi Caïet voará. E eu vos dou minha palavra de prefeito: todo o nosso vinho vender-se-á!”

A surpresa foi geral. Todo mundo ficou mudo diante de semelhante afirmação.

Mas o prefeito era sério demais para mentir!!!

Mensageiros foram enviados para anunciar o evento em toda a região e a população trabalhou duramente para preparar a festa.

No dia anunciado, milhares de curiosos acorreram dos quatro cantos.

Fazia tanto calor que o vinho saía em cascata das mãos dos habitantes de Santo Ambrósio, todos eles transformados em taverneiros.

Até hoje se comemora a festa do “Volo Biòu”
Por fim, após uma demorada preparação, o boi Caïet foi levado em cortejo, ornado com magníficas asas e acompanhado por toda a população.

Tendo chegado ao topo do morro, nosso bom boi foi jogado no ar sob aplausos e aclamações.

Mas, ele se precipitou no vazio e se espatifou, deixando seus restos um pouco por toda parte!

Falou-se de um fato misterioso acontecido na noite anterior.

Beoulaigo, obstinado bebedor de água, teria tirado uma pluma de uma das asas para desequilibrar o boi voador.

Mas do vinho não ficou sequer uma gota!

O prefeito tinha razão!

Desde aquela data, nos dias 13 e 14 de julho é organizada em Saint-Ambroix a festa do “Volo Biòu” em que os habitantes tentam fazer um boi voar!!!




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