domingo, 28 de maio de 2023

O senhor feudal criminoso, o ermitão piedoso
e o barrilzinho misterioso

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs




Habitava nos confins da Normandia um destemido cavaleiro, cujo nome causava terror na região. De seu castelo fortificado junto ao mar, não receava nem mesmo o rei.

De grande estatura e belo porte, era no entanto vaidoso, desleal e cruel, não temendo a Deus nem aos homens.

Não fazia jejum nem abstinência, não assistia à Missa nem ouvia sermões. Não se conhecia homem tão mau.

Numa Sexta-feira Santa, bradou ele aos cozinheiros:
— Aprontai-me para o almoço a peça que cacei ontem.

Ouvindo isto, seus vassalos exclamaram:
— Senhor, hoje é Sexta-feira Santa. Todos jejuam, e vós quereis comer carne? Crede-nos: Deus acabará por vos punir.
— Até que tal aconteça, terei enforcado e roubado muita gente.
— Estais seguro de que Deus tolerará mais isso? Vós devíeis arrepender-vos sem demora. Em um bosque vizinho há um padre eremita, varão de grande santidade. Vamos até lá e confessemo-nos — insistiram os vassalos.
— Confessar-me? Aos diabos! — respondeu com desprezo o senhor.
— Vinde ao menos fazer-nos companhia.
— Para me divertir, concedo. Por Deus, nada farei.

E puseram-se a caminho. Na floresta solitária e quieta encontraram o santo varão na ermida.

Advertido pelos vassalos, que se confessaram, saiu o eremita ao encontro do orgulhoso senhor, que ficara montado. E disse-lhe:
— Sede bem-vindo, senhor. Visto que sois cavaleiro, deveis ser cortês. Desmontai e vinde falar comigo.
— Falar convosco? Por que diabos? Estou com pressa.
— Entrai e conhecei minha capela e minha morada.

Muito a contragosto e resmungando, o cavaleiro apeou. O eremita tomou-o pelo braço, conduziu-o diante do altar e disse-lhe:
— Senhor, matai-me, se quiserdes, mas daqui não saireis sem antes confessar-vos.
— Não contarei nada! E não sei o que me impede de matar-vos.
— Irmão, dizei-me um só pecado. Deus vos ajudará a confessar os demais.
— Diabos! Não me dareis sossego? Eu o farei, mas de nada me arrependerei.
E com grande arrogância contou de um só lance todos os pecados.

Depois de ouvi-lo, o eremita propôs:
— Senhor, pelo menos sujeitai-vos a uma penitência.
— O quê!? Penitência!? Caçoais de mim! — vociferou furioso o cavaleiro.
— Jejuareis todas as Sextas-feiras durante três anos.
— Três anos! Estais louco! Jamais!
— Então, um mês.
— Também não.
— Ireis a uma igreja e direis aí um Padre-Nosso e uma Ave-Maria.
— Para mim seria enfadonho, e ademais, tempo perdido.
— Pelo amor de Deus todo poderoso, pegai pelo menos este barrilzinho, enchei-o no regato próximo e trazei-o de volta para mim.
— Bem, isto não me custa tanto. E sobretudo para ficar livre de vós, concedo.

Saiu o cavaleiro em direção à fonte, e de um só golpe afundou na água o barrilzinho. Neste não entrou uma gota sequer. Tentou novamente de um jeito, de outro... Nada!

Intrigado e rangendo os dentes de raiva, voltou à ermida e esbravejou:
— Barril enfeitiçado! Não consigo meter-lhe uma só gota de água!
— Senhor, que triste estado é o vosso! Uma criança o teria trazido transbordando. Isto é um sinal de Deus, por causa de vossos pecados.
— Pois eu vos juro que não lavarei minha cabeça, não farei a barba nem cortarei as unhas enquanto não encher este barril, ainda que tenha de dar a volta ao mundo. E nisto empenho minha palavra!

E assim partiu o cavaleiro com o barrilzinho, levando só a roupa do corpo. Em todos os poços e regatos, cascatas e rios, lagos e mares, experimentava encher o pequeno tonel, mas sempre em vão. Caminhando sem cessar, passando frio e calor, por planícies e montanhas, percorreu ele muitos países.

Maltrapilho e sujo, curtido pelo sol, obrigado a mendigar, sofreu fome, insultos e chacotas, pois muitos desconfiavam dele. Seu corpo ia definhando, e o barrilzinho pesava-lhe enormemente, amarrado ao pescoço.

Ao cabo de um ano de fracassos, decidiu voltar à ermida, onde por fim chegou, exatamente na Sexta-feira Santa. O eremita, não o reconhecendo, perguntou:
— Caro irmão, quem vos deu esse barrilzinho? Há um ano entreguei-o a um belo cavaleiro, que não voltou mais aqui. Nem sei se ainda vive.
— Esse cavaleiro sou eu, e este é o estado em que me colocaste! — respondeu cheio de cólera o desgrenhado peregrino, contando a seguir suas desventuras.

O santo homem indignou-se ante tanta dureza de alma, bradando:
— Vós sois o pior dos homens! Um cão, um animal qualquer teria enchido o barril. Ah! bem vejo que Deus não aceitou vossa penitência, porque não vos arrependestes!
E pondo-se a chorar, rogou à Santíssima Virgem que intercedesse por aquele pecador empedernido.

Enquanto o eremita soluçava em sua longa oração, o cavaleiro, quieto, foi tocado pela graça. Seu coração tão duro comoveu-se. Os olhos se lhe turvaram. Uma grossa lágrima rolou-lhe pela face ressequida, caindo diretamente dentro do barrilzinho, que trazia amarrado ao pescoço. E esta única lágrima encheu-o até os bordos.

Sinceramente arrependido, o cavaleiro pediu para confessar-se. O eremita, maravilhado, abraçou-o em prantos de alegria. Após ministrar a absolvição sacramental ao penitente, o eremita perguntou-lhe se queria receber a comunhão.
— Sim, meu pai. Mas apressai-vos, porque sinto que vou morrer.

Tendo recebido o Santíssimo Sacramento, com a alma purificada, o cavaleiro agradeceu comovido ao eremita, e colocou-se em suas mãos. Pouco depois exalava o último suspiro.

A capela iluminou-se, e os anjos levaram sua alma ao Paraíso. Diante do altar, o eremita velou longamente aquele corpo coberto de andrajos, tendo junto de si o prodigioso barrilzinho.


(Fonte: Adaptado de "Poètes et prosateurs du Moyen Âge", Hachette, Paris, 1921).


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domingo, 21 de maio de 2023

Na natureza pode Deus mostrar sua figura,
ou a de sua Mãe

Nossa Senhora do Rosário, dita de los Humeros, Sevilha, Espanha.
Nossa Senhora do Rosário, dita de los Humeros, Sevilha, Espanha.
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
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Cantiga 342 & 127 do rei de Castela Alfonso X, o Sábio. Cantigas de Santa María

Como Nossa Senhora fez aparecer sua imagem entre umas pedras de mármore em Constantinopla.


“Com razão pode Deus mostrar a sua imagem ou à de Sua Mãe na natureza, pois Ela quis mostrá-la”.

Posto que Deus ao criar as coisas como elas são, ou de outras muitas outras formas caso tivesse querido, não teve nem tem de fazer esforço algum, nem se preocupa em demasia em lhes dar forma, pois Ele, sendo quem é, tem poder próprio do início ao fim.

Portanto, se nas pedras faz aparecer figuras, ninguém deve achar estranho que o faça até nas ervas, pois é Ele que as faz nascer e lhes proporciona muitas cores para que elas sejam de nosso agrado.

Por isso aconteceu em Constantinopla, como eu fiquei sabendo, que o Bom Imperador Manuel mandou fazer uma muito nobre igreja, e segundo me contaram, mandou trazer mármores de muito longe para cortá-los pelo meio e assim fazer grandes chapas para a base do altar de Nossa Senhora, Mãe de Nosso Senhor.

E quando as serravam viram em seu interior uma imagem pintada a cores, como se a tivesse querido pintar o próprio Deus, segurando em seus braços Aquele que assumiu a carne d’Ela.

O Imperador quando soube, cavalgou até o local, e vendo a imagem, imediatamente a venerou e a fez colocar junto à porta por onde todos deviam entrar.

E ali se encontra até nossos dias, para edificação e devoção de todos. Isso fez Nossa Senhora pelo fato de que Ela por sua graça pode amolecer o coração do mau, assim como pode moldar a pedra embora muito dura.

Fonte: sh4m69. Interpretes/Performers: Ensemble Constantinople




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domingo, 14 de maio de 2023

O ladrão e o luar

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
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política internacional,
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E aconteceu assim: durante a noite um ladrão tentou entrar na casa de um homem rico. Era lua cheia e levou compinchas com ele.

Na casa havia uma janela através da qual entrava o luar. Mas o bom homem dono da casa acordou, ouvindo passos de alguém caminhando pelo telhado e achou que só podiam ser ladrões.

Ele então acordou sua mulher e lhe disse:

– “Fala baixinho: eu escutei passos de ladrões que andam pelo nosso telhado. Quando você ouvir que estão chegando perto, me pergunte em voz clara:

– “Ah, meu marido como é que você conseguiu tanta riqueza como nós temos?”

“E enquanto eu não responder, você continue me perguntando até que eu diga”.

E quando ela ouviu o ladrão, começou a pedir ao marido o que lhe ordenara, e o ladrão começou a ouvir o que eles falavam.

O marido não respondia o que ela lhe perguntava, e ela insistiu várias vezes até que ele disse:

– “Vou te dizer, porque você quer muito saber. Não se reúne tantas riquezas sem ladroeira”.

E a mulher então disse:

– “Como é que pode ser uma coisa dessas? Porque as pessoas que você conhece te têm em conta de homem bom” ...

E ele replicou:

– “É que eu encontrei uma sabedoria para roubar. É uma coisa muito secreta. E muito sutil! De maneira que nunca ninguém suspeitou de mim tal coisa”.

E a mulher disse:

– “Como é que você fez?”

Ele respondeu, contando:

En seu quarto o bom homem e sua mulher aprontaram a cumbuca.
Quarto medieval, Museu de Arte Decorativa, Paris
– “Uma noite de lua eu andava com meus companheiros subindo pelos tetos por cima de uma casa que queríamos roubar.

“E cheguei até uma janela por onde entrava o luar. Então, eu pronunciei sete vezes “Saulan!, saulan!”

“E tendo dito isso, abracei o luar que entrava pela janela e descia dentro da casa. E foi a partir daquela casa que consegui roubar todas as outras.

“E então ia aos tetos, falava “Saulan!, saulan!”, abraçava o raio da lua e, segurado nele, descia e depois saía pela janela. E assim ganhei tudo isso que você está vendo”.

Tudo isto ouviram os ladrões. Eles gostaram, e o chefe disse:

– “Acabamos conseguindo mais do que pensávamos”.

Eles ficaram uma hora ali até só ouvirem o silêncio, achando que os donos da casa já estavam dormindo.

Então o chefe dos ladrões se aproximou da janela e disse sete vezes “Saulan!, saulan!”, abraçou o luar e pulou pela janela.

Mas aconteceu que ele caiu de cheio no chão da casa do bom homem, quebrando-se todo.

E quando o bom homem ouviu o barulho, levantou-se de sua cama e lhe deu muitas pauladas. Enquanto isso os compinchas, vendo a cena, fugiram correndo.

O bom homem chamou seus vizinhos, segurou o ladrão até que o dia amanhecesse, e entregou-o à Justiça.


(Fonte: Calila y Dimna, coletânea de contos de Castela de 1251 / 1261 provavelmente mandada traduzir pelo rei Alfonso X el Sabio quando ainda era muito jovem)



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domingo, 7 de maio de 2023

A raposa e o lobo

A raposa e o lobo
A raposa e o lobo
Luis Dufaur
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Ouvistes a história da raposa e do lobo? Se não, vou vos contar. Tomai nota.

Uma vez a raposa andava num local onde costumava fazer muito estrago. Montaram então uma arapuca com uma galinha no meio de um poço d’água.

Quando a raposa viu a galinha, foi até o bordo do poço. Mas tinham montado um arranjo pelo qual assim que se aproximasse da galinha, cairia no poço.

E assim aconteceu.

Ela foi ficando cada vez mais perto da galinha, e subitamente caiu no poço. Para não se afogar, montou numa bacia e ali ficou.

Aconteceu de o lobo, ao passar por perto, ver a raposa lá no fundo. Então lhe disse:

“Ei, o que quer dizer isto, minha irmã? Tu que és sábia e mestra, como te aconteceu este mal?”

Respondeu a raposa:

— “Oh! Eu sou inocente, inocentíssima! Você sabe que nós pertencemos a uma mesma classe: você e eu vivemos roubando. Ajuda-me, como é nossa obrigação. Oh! Imploro-te que me ajudes naquilo que podes”.

Respondeu o lobo:

— “O que queres que eu faça?”

Disse a raposa:

— “Vem, entra nesta bacia seca e ajuda-me aqui embaixo”.

Disse então o lobo:

— “Mas tu não tens algo para comer?”

Respondeu a raposa:

— “Aqui há uma galinha”.

Ouvindo isso o lobo pulou na bacia e, na hora em que caiu, pela força da queda o lado em que estava afundou mais, enquanto o lado da raposa foi para cima, aproveitando-se ela para pular fora.

Então o lobo disse à raposa:

— “Ei, ei, ei, ei tu vais embora e me deixas aqui no fundo? Onde estão tuas boas maneiras?”

E ela respondeu:

— “Lamento, este mundo está feito deste jeito: há os que sobem e os que descem!”

E sumiu.

(Autor: São Bernardino de Siena, “Apologhi e Novellette”, Intratext



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