domingo, 31 de março de 2024

Como Nossa Senhora converteu um mouro

Nossa Senhora com o Menino Jesus. Barnaba da Modena (1328-1386), Museu do Louvre, Paris.
Nossa Senhora com o Menino Jesus.
Barnaba da Modena (1328-1386), Museu do Louvre, Paris.
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs




Cantiga 46 do rei de Castela Alfonso X, o Sábio. Cantigas de Santa María

Esta Cantiga conta como a imagem de Santa Maria, que um mouro guardava com honra em sua casa, deu leite pelos seus peitos.




Para que sejam mais conhecidos seus milagres, a Virgem faz alguns diante de homens sem fé.

E isto aconteceu como vou contar-vos e como o apreendi. Um mouro com grande hoste de Ultramar foi guerrear contra os cristãos e roubar os desprevenidos.

Aquele mouro fez estragos nas terras em que pôde entrar, e tudo o que roubou levou consigo. E muito satisfeito levou tudo à sua terra, para repartir todos os objetos roubados que tinha coletado.

Daquele conjunto que repartiu, guardou para si uma imagem da Virgem que lhe pareceu não ter igual, e depois de examiná-la muito, a fez preservar e guardar envolvida em panos de ouro.

Com frequência ia vê-la e, de si para si, dizia e raciocinava que não podia acreditar que Deus tivesse querido se encarnar e tomar carne de uma mulher.

“Perdidos estão todos aqueles que acreditam nisso”, dizia ele, “porque não consigo entender que Deus se desse tanto trabalho, nem que se humilhasse tanto.

“Pois ele que é tão grande não pode se encerrar no corpo de uma mulher e andar suando entre gente baixa, como dizem que andou para salvar o mundo.

“Mas, se de tudo isso que Ele mostrou, Ele quisesse vir até mim para me mostrar, eu me tornaria cristão logo e sem demora, e receberia o crisma junto com esses mouros barbudos”.

Mal pôde continuar o mouro com esses raciocínios, quando viu os dois peitos da imagem, como sendo de viva carne, dos quais emanava leite.

Quando viu coisa semelhante, sem mentir se pôs a chorar e fez vir um clérigo que o batizou. E depois disso, sem falta, fez que os seus se tornassem cristãos e, além do mais, praticou outras obras boas conhecidas.


Video: Cantiga 46 de Santa Maria






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domingo, 24 de março de 2024

O briguento e sua sombra

Doidos briguentos, capela de La Manta, 1420
Doidos briguentos, capela de La Manta, 1420
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
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Fala para mim se há algo mais pesado que a areia, que o chumbo ou que a massa de ferro.

Sim há. Sabes o que é?

É o homem briguento.

Esse é o pecado mais fátuo, doido e grave que se possa cometer.

E quem fica nele, enquanto não sai desse pecado, não pode se salvar.

Ó briguento, tu és semelhante ao frenético que não respeita ninguém. Esse mataria seu pai, sua mãe e seus irmãos do mesmo jeito que sacrificaria um animal.

E como eu sei disso, posso falar aqui ousadamente e com verdade.

Eu já estive num local em que os próprios religiosos se atacaram para matar uns aos outros.

Vós não percebeis que procedeis pior que os lobos e que os cachorros?

Quereis ver como eu digo a verdade?

Vós podeis vê-la na vossa experiência.

O cão não come a carne de outro cão, tampouco o lobo come a carne de outro lobo, nem mesmo o leão come outro leão, e assim fazem todos os animais.

O briguento age de tal maneira mal que se o irmão, o filinho ou o pai estão contra ele, ele se engenharia para assassiná-los.

Queres ver? Eu quero te contar um exemplo, ó briguento, e tal vez com ele vais pensar melhor.

Houve um louco que caminhava rumo ao oeste e levava uma longa marreta na mão, enquanto que o sol lhe batia nas costas e projetava sua sombra diante dele.

Assim que ele percebeu essa sombra, lhe pareceu que fosse um outro que andava com um bengala na mão como tinha ele.

Então saiu correndo atrás desse outro para lhe dar uma marretada. Porém, a sombra corria do mesmo jeito que ele.

E após ter corrido uma boa distância sem conseguir alcançá-la, ele parou de esgotamento.

Cena de uma revolta camponesa, Jean Froissart  (1337-1405)
Cena de uma revolta camponesa, Jean Froissart  (1337-1405)
Depois se pôs novamente em pé e recomeçou a correr para atingir sua sombra. Até que enfim após correr mais um tanto, chegou a uma curva onde a sombra ficou de lado.

Foi atrás dela até encontrar uma grande pedra onde a sombra tinha ficado ereta e fixa.

Assim que a viu parada com uma bengalona na mão ele foi por cima dela e se assanhou tanto contra sua sombra que acabou se dando uma pancada e rompeu a própria cabeça.

Assim fazem os que brigam. Doidinhos, que por pura insânia quebram sua cabeça e a de todos que estão perto deles!

Ah! Se eu fosse o imperador! Mas me falta o cetro de mando.

Eu os deixaria sem comer. Sim, até que eles abandonem esse pecado. Porque do contrário não se reconciliam jamais e morrem desesperados.

Então, caro briguento. Não queiras te desesperar. Arrepende-te e faz o que eu te ensino.


(Autor: São Bernardino de Siena, “Apologhi e Novellette”, Intratext)



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domingo, 17 de março de 2024

A Ponte do Diabo em Thueyts

Igreja da cidadinha de Thueyts
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
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Em Ardèche, a pequena cidade de Thueyts parece muito calma. Mas essa tranquilidade esconde um terrível segredo.

Na origem dele está uma ponte muito antiga que atravessa o rio Ardèche.

Há muito tempo, um casalzinho de adolescentes de Thueyts ficou secretamente namorado. E combinaram de se encontrar numa pequena mata.

Essa mata era bonita e muito cheia de folhas, mas ficava de outro lado do rio e não havia ponte. A única solução era caminhar três léguas para cruzar pela ponte da cidade vizinha.

A solução era fatigante.

Um belo dia, o rapaz foi até o córrego e tempesteou violentamente dando fortes brados:

‒ “A quem lhe ocorreu fazer este barranco de pedra? Por acaso nós somos amaldiçoados para não termos uma ponte igual que nossos vizinhos? Não é justo!”

“O que te falta para ter a felicidade, meu maravilhoso amigo?”
Subitamente, vindo de não se sabe onde, um curioso personagem aproximou-se do moço louco de sentimentalismo:

‒ “O que te acontece meu amigo”, sussurrou melosamente o desconhecido.

‒ “Bem, nada, apenas um desabafo” respondeu o doido de amor.

‒ “Chega disso meu jovem companheiro. Como é que um rapaz tão belo, tão forte, tão inteligente e tão esperto pode lamentar alguma coisa?”

O moço sentiu o peito estufar.

‒ “O que te falta para ter a felicidade, meu maravilhoso amigo?”, prosseguiu o singular ignoto.

‒ “Nada que tu possas fazer!”, exclamou o inexperiente.

‒ “Você acredita? Eu tenho muitos colegas que me ajudam com frequência, e nada me é impossível!” gracejou o forasteiro.

‒ “Uma ponte! Eu quero uma ponte! Aqui! Onde nós estamos! Mas, isso é uma tarefa impossível”, gemeu exasperado o jovem seduzido.

‒ “Ohhhh, só isso! Não há nada mais fácil!”

O bisonho galante não era tão bobo e percebeu que aquela figura esquisita era um enviado satânico. Mas, ele quis mostrar perspicácia e respondeu:

A ponte do conto, Thueyts
‒ “Eu acho que você quer me pedir algo em troca, ide satanizar outro, bom homem”, disse achando ter feito um belo jogo de palavras.

‒ “Nada disso, eu só tenho vontade de vos agradar”.

‒ “O quê?” falou surpreso o jovem melado.

‒ “Agora eu tenho que partir. Já é tarde, mas eu voltarei”, murmurou o ser misterioso com voz que parecia sair de um túmulo.

Alguns dias depois, os habitantes de Thueyts descobriram uma ponte que atravessava magnificamente o rio Ardèche. Os apressados amantes foram os primeiros a testá-lo. Porém, nunca voltaram.

Desde aquele dia, o povo está convencido que os casais adolescentes que o atravessam desaparecem.

Alguns pensam no diabo. O pároco lembra sempre aos fiéis que Deus pune aqueles que alimentam amores ilegítimos.

E nas noites em que o vento bate com força, os velhos habitantes dizem ouvir os gemidos dos precitos no inferno.



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domingo, 10 de março de 2024

Não entendia as pregações

Santo Antônio do Deserto. Burgos, Espanha
Santo Antônio do Deserto. Burgos, Espanha
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
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Houve um santo ermitão que morava numa pobríssima cabana na floresta.

Ele mantinha um pobre servidor que não retinha nada dos ensinamentos que ouvia.

E por isso nunca assistia a pregação alguma.

Ele contou então ao santo anacoreta a causa pela que nunca ia à missão ou à catequese qualquer que fosse:

— “Eu não consigo guardar nada do que ouço”.

Então o santo ermitão lhe disse:

— “Pega essa panelinha”.

Porque ele tinha uma panelinha para cozinhar o peixe, e lhe disse:

— “Põe água a ferver. Quando a água estiver fervendo joga um pouco na panelinha que está toda engordurada”.

E o rústico fez o que ele mandou.

— “Vai, joga tudo fora sem deixar nada”.

Assim fez o serviçal. E o ermitão lhe disse:

— “Agora olha se ela está gordurenta como estava antes”.

O servidor tapado disse que de fato estava menos engordurada.

São Bernardino de Siena foi autor de muitas fábulas moralizadoras. Benvenuto di Giovanni (1436 - 1509-1518)
São Bernardino de Siena foi autor de muitas fábulas moralizadoras.
Benvenuto di Giovanni (1436 - 1509-1518)
Então o ermitão voltou a dizer:

— “Acrescenta mais uma um pouco de água fervendo e joga-a fora”.

Ele o fez. E ficou ainda mais limpa.

E lhe ordenou agir da mesma maneira diversas vezes. E de cada vez a panelinha estava mais limpa.

Por fim, o santo ermitão lhe disse:

— “Tu falas que não reténs nada na cabeça! Sabes por quê? Porque tu tens tua mente engordurada como estava a panela.

“Vai e enche-a de água e verás que logo tua mente se purificará.

“E acrescenta mais um pouco. E quanto mais, ela mais limpa ficará.

“Quanto mais vezes ouvirás a palavra de Deus, tanto mais tua mente se desentupirá.

“E quanto mais limpa ficar, tanto mais compreenderás a palavra de Deus.

“No fim, tua mente estará inteiramente limpa e purificada sem sujeira nem coisa feia alguma”.



(Autor: São Bernardino de Siena, “Apologhi e Novellette”, Intratext)



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