Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de política internacional, sócio do IPCO, webmaster de diversos blogs |
Existe em certas regiões marítimas um tipo de pássaro tão branco quanto a neve, cujo prazer é andar na crista das ondas dos mares convulsionados.
Deparando-se com algo dentro d’água, mergulha inesperadamente, saindo do outro lado triunfante e com altaneria da bravura cometida, portando no bico o fruto da sua ousadia: um peixe.
Daí vem o seu nome, que é Procelária — pássaro que luta contra as procelas (procelas são as cristas brancas das ondas do mar).
Muito tempo atrás, na época em que os homens sabiam admirar, existia ao lado do paraíso uma região de tal maneira bela, que, segundo os mais famosos sábios, era o espelho da beleza divina.
A fim de evitar a invasão das forças do mal, Deus criou em sua volta cordilheiras tão majestosas e tão grandiosas, que nenhum inimigo ousava delas se aproximar. Evidentemente a paisagem não seria tão perfeita se a ela não fosse acrescentado o grandioso panorama marítimo. Sendo assim, no lado da região que dava para o mar, Deus não criou montanhas, mas fabulosas palmeiras imperiais. Nesse pequeno paraíso, os animais mais belos foram criados, não existindo cobras, nem lagartos, nem mosquitos e aranhas. Tudo era maravilha, tudo era encanto.
Como não poderia deixar de ser, as forças do mal, no mais profundo dos abismos, uivavam e se mordiam de ódio contra tal charme. Queriam, entre um ranger de dentes e outro, estraçalhar aquela maravilha. Mas como? Pelas montanhas, não lhes tinha sido dado o poder; pela praia lhes era impossível, pois a sublimidade da região era tal, que eles ficavam paralisados de terror. Até que se levantou o chefe das forças do mal, e disse:
— Vamos enfurecer os peixes do mar mais hediondos, dos mais profundos dos mares, e esperemos uma tempestade. Aí chegará a nossa hora, pois através dos monstros ajuntaremos grande quantidade de água, com a qual devastaremos a região.
São Francisco prega aos pássaros |
Cientes do perigo, todos os animais se reuniram em torno do monárquico leão, a fim de tomar as medidas necessárias.
— Não temam — disse com rugido majestoso o nobre leão. — Isso é obra das forças do mal e seus seguidores. Deus está conosco. Ordeno aos pássaros, meus embaixadores, que vão até S. Francisco, patrono de todos os animais, e lá do céu tragam a solução.
Após sete dias de viagem, chegavam os pássaros junto a São Francisco. O problema foi de difícil solução. De início S. Francisco disse:
— Vamos construir montanhas, tão altas como as já existentes, isolando assim por completo a região terrestre da marítima.
— Isso não é possível — disse um pássaro amarelo com listras vermelhas. — Não poderíamos assim fazer, porque perderíamos a grandiosa beleza do mar.
— De fato tens razão. Vamos até Nossa Senhora. É certo que ela nos ajudará.
Nossa Senhora dos pombos, Lu-Hung-Nien, século XX |
— Uma das coisas que o mal mais teme é a minha vocação virginal. Você — disse, apontando para um pássaro cinzento que estava pousado no ombro do patrono S. Francisco — gostaria de ter a honra desse combate?
O pássaro, com muita humildade, voou até os pés da Virgem, beijou-os devotamente, e Ela lhe disse:
— A honra desse combate se estenderá a todos os seus descendentes.
Sempre que houver tempestade, e que as ondas atentarem contra a criação sublime de meu Filho, avancem corajosamente contra as malditas ondas, bradando "Ave Maria Puríssima!" Eu lhes garanto que o mal fugirá, e as vagas das ondas se tornarão inofensivas.
Terminado o conselho, a Mãe de Deus abençoou esse seu filho, enchendo sua alma de heroísmo e amor pelo combate. Imediatamente o pássaro mudou de cor, que era cinza, e tornou-se branco como as espumas do mar. Era o pássaro Procelária. Desse dia em diante, toda a paz dos animais da região ficou confiada à estirpe dos Procelárias.
Uma coisa sabemos: a toda honra concedida por Deus correspondem sacrifícios, que Nossa Senhora nos ajuda a suportar. Portanto, o nosso Procelária teria também seus sacrifícios: não lhe foi dado o tempo de construir para si ninhos confortáveis e aconchegantes, como os demais pássaros. O Procelária e seus descendentes teriam que viver em buracos nas pedras, enfrentando dia e noite o frio e a chuva, a fim de estarem a todo momento prontos para o combate.
Ao saber das boas novas, o bravo leão, junto com sua corte, rendeu graças à Virgem, Rainha dos Exércitos. Usando de sua astúcia militar, o rei dos animais não perdeu tempo: analisou o campo de batalha e indicou os pontos estratégicos.
É de chamar a atenção o que se passou com os Procelárias: nasceram muitos filhotes, porém nem todos nasciam brancos e reluzentes. Havia os que nasciam cinzentos, e esses, ao se tornarem adultos, iam para o vale e aí formavam seus ninhos confortáveis, constituindo uma família enorme de pássaros cinzentos.
Desses cinzentos, quando algum pássaro branco nascesse, desde jovem ia para as montanhas de pedras. Em suma, a honra do combate era somente para os portadores da bênção da Virgem.
Os Procelárias brancos eram em número de vinte. O vigésimo, em certa época, chamava-se Martim Procelária, e é aqui que começa a história.
Martim era o Procelária mais cândido, o que mais luz refletia. Tal era a sua alvura, que nenhum pássaro conseguia fitá-lo por muito tempo. Nos combates às forças do mal, Martim Procelária era o mais ousado, e no brado à Virgem ele era o mais harmonioso. O mal nunca sofrera tanto como estava sofrendo agora, com o Martim.
O chefe do mal, com seus uivos medonhos, rosnando, reuniu novamente seus asseclas para maquinarem planos de destruição do vale maravilhoso:
— Precisamos eliminar um dos Procelárias. Assim, com um ponto fraco, conseguiremos derrubar o vale. E temos que eliminar o mais importante deles: o Martim Procelária.
Era quase noite. O vento frio uivava violentamente por entre as pedras e cavernas da montanha. E lá, na vigésima guarita de pedra, estava o nosso bravo Martim. De repente entra um sopro frio, lentamente, como jamais se fizera sentir. Era o sopro da tentação. Nisso o Martim pensou: "Como é dura a minha vida! Nem tenho ninho confortável! Creio até que os animais, lá no vale, nem sabem que existo". Era o começo de uma tentação.
O dia seguinte amanheceu nublado, e o pobre Martim voava de maneira diferente. O que se passava? Talvez nem ele mesmo soubesse. Mas o que sentia era um vazio na alma. Para que estaria ele fazendo todo aquele sacrifício? Talvez sua vocação fosse outra... Era a força do mal, querendo destruí-lo.
Estava certo dia sobre uma pedra, tomando um agradável banho de sol, e seus pensamentos vagavam pelo vazio. Olhando para o alto, viu cortar o azul celeste um ponto negro. Sentiu o mesmo vento frio do outro dia. Sua alma, cheia de dúvidas, já estava preparada para ser atacada pelo inimigo.
Ao se aproximar o horrível ponto negro, Martim notou que era um pássaro de vôo majestoso. Pela tranqüilidade aparente do vôo, parecia que jamais preocupação alguma cortava seu caminho, tudo era brincadeira. O misterioso pássaro contornava suavemente as brancas nuvens, que pareciam brincar com ele. Isso atraía a atenção de Martim, e Belzebu, o chefe das trevas, sorria com isso.
Instintivamente, quiçá levado pela admiração, Martim começou a voar. Subiu... subiu... até que teve um pequeno sobressalto: a aparência do misterioso voador não correspondia à majestade de seu vôo. Enquanto seguia rumo a ele, o monstro preto como urubu voltou sua cabeça despenada para Martim, e tentando ser agradável, disse:
— Oi!
Que diferença entre esse cumprimento e aquele do céu, "Ave Maria Puríssima"... Mas, já fraco pela tentação, o infeliz Martim teve vergonha de ser ridicularizado se respondesse como sabia. E então pensou: "Quem sabe se, para conquistar sua amizade, um outro ‘oi!’ não ajudasse..."
O pobre Procelária não sabia que seu brado "Ave Maria Puríssima" espantaria o demônio ali encarnado.
— Oi! — respondeu o Martim, após muita hesitação.
A alma de Martim já estava inteiramente quebrada pela tentação do conforto, do sossego...
— Menelau é o meu nome — disse o urubu, já triunfante da primeira batalha. — A mim foi dado todo este panorama. Tenho liberdade de ir para onde eu quiser. Nada me detém. Comida não me falta. Tudo para mim é conforto: minha esposa, meus filhos, meu lar... E você, o que tem?
Coitado do Martim! Ficou com vergonha de dizer que só tinha a glória. Vendo sua hesitação, Menelau insistiu:
— Venha comigo! Repartiremos juntos minha felicidade, meus vôos e meus panoramas. Para mim é fácil dar tudo isso a você. Queres? É só me seguir.
O Martim ainda se lembrou:
— Mas se as ondas vierem e...
— Nada disso! — rugiu Menelau, cortando as palavras de Martim. E depois procurou ser suave:
— Estamos na primavera. Ondas, tempestades, só daqui a seis meses, no inverno. E além do mais, daqui a três meses você será substituído. Nesse ínterim você terá aquela felicidade...
Sem esperar resposta, Menelau levou Martim para conhecer outros panoramas. Tudo era novidade para o pequeno Martim. Ele estava encantado, e nem mais lhe causava estranheza a feiúra e horror do seu novo amigo. De fato o mar estava calmo, não havia perigo. O infeliz Procelária resolveu seguir o asqueroso urubu. Voaram juntos por um bom tempo, e depois a fome começou a apertar.
— Onde está o alimento? — perguntou ingenuamente o Martim, olhando um pouco inquieto para Menelau.
— Logo o teremos. Veja lá em baixo, são todos os meus parentes que estão reunidos em torno de seu banquete. Vamos até lá.
E assim, em círculos cada vez mais baixos, suavemente começaram a se aproximar do festim. "Que será aquilo? — pensava Martim. — Qual será a surpresa? Parece ser boa, pois todos comem com tal avidez. Parece que nem respiram para comer".
Na realidade a surpresa lhe foi desagradável.
— Que mau cheiro!!
— Venha rápido — gritou Menelau, com a boca cheia de carniça. — Se não chegar logo, nada lhe sobrará.
Menelau, sem mesmo ter acabado de chegar, já se atolara na carniça.
— Mas isto é o meu alimento tão prometido? — perguntou Martim.
— Ora, a coisa não é tão ruim. É só uma questão de hábito.
Aproximando-se ainda mais da malcheirosa carniça, Martim titubeou.
— O que é isso? — perguntou o raivoso urubu. — Não quer ser um dos nossos? Então coma.
A fome era grande... e o Martim comeu. Imediatamente suas penas brancas e reluzentes tornaram-se negras e opacas como um carvão. Seu bico reto e agudo, próprios para os brados à Virgem, tornou-se curvo e ensebado como um anzol velho. Seu pescoço tornou-se despenado e cheio de pelancas. Sua voz harmoniosa tornou-se um hediondo grasnar rouco e desafinado.
O bando dos urubus caiu na gargalhada.
— Agora não adianta mais. Tu serás um dos nossos para todo o sempre.
E as gargalhadas no meio da comilança continuaram. "Já não sou mais um Procelária. Tornei-me um urubu" — pensou o degradado Martim, e afundou-se na carniça podre e purulenta.
Passaram-se dois meses. Martim não conhecia mais a alegria. A nova amizade o enganara. Martim estava enfadado da vida. Começou a voar só e muito alto. Menelau, porém, o vigiava atentamente e à distância. Em seus vôos solitários, Martim olhava nostálgico para o azul do mar, sem todavia ter coragem de retornar.
"Como eu pude abandonar minha vocação? — pensava o Martim. — Que fraqueza a minha! Deixei de ser um eremita Procelária para ser o mais podre dos animais. Quando Nossa Senhora chama alguém para uma vocação tão alta, e esse alguém volta as costas para a vocação, o tombo é grande, e se afunda no mais profundo dos abismos. Quando se tira o peixe para fora d’água ele morre, porque foi feito para viver na água. Assim também, quando Deus cria alguém para uma vocação e este se afasta dela, morre como o peixe fora d’água".
Em tudo isso Martim pensava. E quando a saudade lhe batia na alma, o negro urubu Menelau logo intervinha com sarcasmo:
— Isso é coisa do passado... Nunca mais você voltará a ser um eremita Procelária. Aliás, vou lhe revelar um segredo. Olhe bem para o horizonte. Que está vendo?
— Vejo uma enorme nuvem escura, prenunciando uma borrasca.
— Pois é, dentro de pouco tempo uma tempestade virá, e seu vale será totalmente destruído.
E assim Menelau descreveu, entre gargalhadas, toda a terrível trama dos demônios e o seu pacto com Belzebu, pois este havia prometido que, se Menelau destruísse o Martim, o vale iria ser destruído e toda a carniça do vale seria dos urubus.
— Veja! — berrou o maldito.
As nuvens negras começaram a se unir, tornando o céu sem luz e de uma escuridão quase palpável. Os ventos começaram a se tornar violentíssimos. A tempestade desabou. Raios e relâmpagos cruzavam o céu.
Os dezenove Procelárias entoavam cânticos de guerra e formavam fileiras próximo às guaritas de pedra, preparando-se para o combate. Os Procelárias sabiam que este seria um terrível combate, pois uma guarita, a vigésima, estava vazia. O que teria acontecido com o bravo Martim? Dos dezenove Procelárias, nenhum sabia dizer.
Repentinamente um raio ensurdecedor deu início à batalha. Furacões gigantescos se batiam contra a arrojada defesa do pequeno paraíso, e os Procelárias, quase esgotados pela fadiga, não se rendiam, pois tinham de seu lado a promessa da Virgem.
O pequeno Martim já não mais ouvia o "fala-fala" do urubu carniceiro. Uma saudade imensa invadia sua alma. Tinha saudade do tempo em que ele era alvo e luminoso, tinha saudade do tempo em que Nossa Senhora o amava.
Menelau, com sua percepção diabólica, sabia o que se passava na alma de Martim, e procurava com todas as forças apagar o entusiasmo que crescia no coração dele:
— A perda de inocência é irreparável, você não tem mais salvação, você é negro como um urubu... O inimigo que ataca os Procelárias não é nada, perto do que vem agora.
Nisso, algo de assustador desponta no horizonte. Uma onda colossal, até então jamais vista, estava se avolumando e caminhando na direção da vigésima guarita, que estava vazia. Enquanto isso os outros Procelárias davam uma mostra de heroísmo sem igual, mas combatiam na outra extremidade, levados por um plano do inimigo, e nada percebiam.
A onda que se aproximava era um verdadeiro furacão devastador. A impressão que se tinha era que os demônios retiraram todas as águas do mundo e ali as concentravam, para a satânica investida.
— Seu paraíso está irreparavelmente perdido — gritou o urubu. — A investida será feita pela vigésima guarita. Você a conhece?
O Procelária, para desespero do urubu, já não se interessava mais pelo que estava ao seu redor. No mais profundo de sua alma, ele rogava a Nossa Senhora:
— Perdão, minha Mãe. Estou arrependido do que fiz. Dai-me forças novamente. Perdão, minha Mãe. Dai-me forças...
No fundo do seu coração, sentiu uma voz que dizia:
— Coragem! Vá, meu filho, vá! Estarei contigo!
Martim, com ar decidido, esticou as asas e lançou-se a toda velocidade contra a tromba d’água, sem perceber que aos poucos suas penas tornavam-se brancas novamente.
O maldito urubu, desesperado, agarrou as patas de Martim, tentando evitar a sua conversão, e os dois afundaram na gigantesca onda. Tudo se acalmou. Tudo estava acabado. O vale estava salvo. No mar, uma grande mancha de sangue em forma de cruz trazia o corpo de Martim para a praia.
E até hoje, quando os eremitas Procelárias marcham entoando seus cânticos de guerra, contando seus feitos nas batalhas, nunca deixam de cantar um cântico dedicado a Martim Procelária, cuja letra é a seguinte:
"Certa vez, neste mar, uma grande guerra se travou entre os nobres Procelárias e o terrível poder das trevas. Mas quando tudo parecia perdido, eis que do céu veio uma luz de grande intensidade, e ouviu-se um brado como nunca se ouvira: AVE, MARIA PURÍSSIMA! Esse raio de luz, que era o Martim, penetrou junto com Menelau num grande furacão, e assim venceu-se a batalha.
Pôde-se ver então a Justiça Divina: Martim Procelária foi ao céu; e Belzebu fugiu acovardado, levando entre os dentes o precito urubu, que teve a mesma sorte de todos os que atentam contra os filhos da Virgem. Passará a eternidade ao lado de Judas, continuamente triturados pelos dentes pútridos, mal cheirosos e incandescentes de Satanás".
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