domingo, 26 de março de 2023

A flor de sangue do castelo de Ringelstein

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs




Anselmo foi um bandido um pouco estranho. Ele decidiu encher-se facilmente de dinheiro sequestrando os viajantes pelas estradas.

Num dia de forte nevoeiro, passava um pobre e velho lenhador, fatigado após uma dura jornada de trabalho.

O velho não percebeu o malandro que se aproximava sorrateiramente.

E foi rapidamente dominado, amarrado e arrastado até um esconderijo secreto.

No dia seguinte, a família do lenhador recebeu uma carta explicando que o pobre velho, mencionado como o “chefe da família”, seria libertado em troca de um resgate.

E a família gritou, mas gritou, gritou e gritou de alegria, pois assim se libertaria do ancião, cuja herança seria então dividida.

Anselmo aguardou alguns dias o pagamento em troca da vítima do sequestro.

Mas, nada!

Esse pobre ancião não interessava a ninguém. Além do mais, precisava alimentá-lo.

O lenhador chorava, gemia, rezava e impedia o bandido e seus asseclas de dormir.

Anselmo decidiu mudar a estratégia e disse:

– “Um chefe de família estropiado será um peso financeiro para a sua família. Da próxima vez, os habitantes da aldeia vão pensar duas vezes antes de me contrariar”.

– “O que vamos lhe fazer?” – murmurou um bandido que não tinha dentes.

– “Vou lhes devolver o pai com uma mão a menos!”

De manhã bem cedinho, no meio de uma bruma nunca antes vista, o lenhador foi maltratado por Anselmo e seus cúmplices.

O sangue do infeliz espalhou-se pelo chão e foi regar uma arvorezinha.

Desde aquele dia terrível, todos os anos, a árvore dá no mês de março uma flor da cor de sangue, para lembrar aos homens o aniversário da loucura assassina e a cupidez de ganhos a qualquer preço.

Viajante, se tu vais ao castelo no início da primavera, lembra-te do pobre lenhador, reflete palavras de sabedoria, e oferece uma oração pelo eterno repouso de sua alma!

Na região do castelo se diz que o fantasma de Anselmo ainda tenta sequestrar e cobrar resgate dos turistas.



CRUZADAS CASTELOS CATEDRAIS HEROIS ORAÇÕES CIDADE SIMBOLOS
AS CRUZADASCASTELOS MEDIEVAISCATEDRAIS MEDIEVAISHERÓIS MEDIEVAISORAÇÕES E MILAGRES MEDIEVAISA CIDADE MEDIEVALJOIAS E SIMBOLOS MEDIEVAIS

domingo, 12 de março de 2023

São Miguel de Aralar

São Miguel de Aralar
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs





Em tempos antigos, quando os godos reinavam na Espanha, Teodosio de Goñi foi um dos maiores heróis bascos.

Sua coragem era lendária e seu braço estava sempre pronto para lutar contra os inimigos.

Uma vez teve que se ausentar de sua terra.

Despediu-se de sua esposa Constança, bela dama de extrema fidelidade ao marido.

Teodósio esteve ausente por algum tempo.

Por fim, ele voltou cheio de felicidade, esperando abraçar sua esposa em breve.

Na estrada perto de sua casa encontrou um eremita, que perguntou seu nome:

“Eu sou Teodosio de Goñi. Estive na guerra defendendo nossas terras, e agora volto para abraçar minha esposa”.

Mas o ermitão, que na realidade fingia se-lo, respondeu-lhe com voz triste:

“Oh, miserável Teodosio de Goñi!

“Durante tua ausência tua esposa manchou a tua honra com atos vis que são do conhecimento de todo o povo”.


Teodósio congelou e mal conseguiu perguntar alguma coisa ao eremita, que desapareceu imediatamente.

Então, tremendo de raiva, galopou para casa, despercebido pelos criados, tarde da noite entrou no seu palácio por uma porta secreta.

Indo no escuro para o seu quarto, verificou, horrorizado, que na sua cama, ao lado de uma trouxa de uma mulher, que pensou ser Constança, dormia um homem.

Então, louco de raiva, ele sacou sua adaga e apunhalou os traidores.

Teodosio de Goñi mata seus pais. Gravado na obra do Pe. Tomas de Burgui
Teodosio de Goñi mata seus pais. Gravado na obra do Pe. Tomas de Burgui
Saiu angustiado e, sem saber o que fazer, dirigiu-se à igreja. Já era madrugada e uma luz fraca iluminava as ruas.

Ele viu uma mulher saindo da igreja e, atordoado de medo, viu que era Constanza.

Ela correu para o marido para abraçá-lo, transportada de alegria. Mas ele, já muito confuso, perguntou-lhe quem eram os que dormiam na cama nupcial.

“Eles são seus pais, que vieram me visitar e a quem dei nosso quarto”.


Essas palavras foram como um raio caindo sobre o infeliz Teodósio.

Entendeu que, enganado pelo eremita, que foi um demônio ou forma infernal, e levado por sua imprudência e violência, cometeu um horrendo parricídio, e fugiu, para espanto de sua esposa.

Espanto que se transformou em horror quando ela voltou ao palácio e viu os pais de seu marido mortos e ensanguentados.

Teodosio de Goñi penitente
Teodosio de Goñi penitente
Ele, movido por seu terrível remorso, foi para Iruña, onde São Marciano era bispo, diante de quem se prostrou em confissão de sua culpa.

O pecado cometido por Teodósio parecia enorme ao homem santo.

E, não podendo absolvê-lo, ordenou-lhe que fosse em peregrinação a Roma, para pedir ao Santo Padre que lhe impusesse a dura penitência que a sua horrenda culpa merecia.

Teodósio empreendeu o caminho para a cidade santa, abrindo caminho entre duras dores de coração.

Por fim, ele entrou em Roma e pediu para ser ouvido em confissão pelo Padre dos Cristãos.

Tratava-se de João VII, que o censurava pela violência do seu caráter, que o levara a cometer tão horrenda ofensa.

“A tua penitência deve ser muito dura, e só a vontade de Deus há de determinar, por intervenção milagrosa, quando terás de ser perdoado.

“Você pegará uma cruz de madeira e prenderá uma pesada corrente de ferro.

“Assim farás uma peregrinação pelos lugares mais rudes e solitários, e somente quando a corrente cair quebrada por si mesma no chão, saberás que Deus te perdoou”.


Correntes penitenciais de Teodosio de Goñi, no santuário de São Miguel de Aralar
Correntes penitenciais de Teodosio de Goñi,
no santuário de São Miguel de Aralar
Teodósio começou sua marcha com a cruz de madeira e uma corrente de grossos elos de ferro, que ele mesmo mandara cingir e rebitar com um martelo.

Todos os dias, sobrecarregado com o peso da cruz e da corrente, ele percorria uma distância em direção ao seu país, surpreendendo os transeuntes, aos quais implorava que orassem para que Deus perdoasse um pecador tão grande como aquele que viam.

Finalmente chegou a Navarra e escolheu como penitência as espessas montanhas da Sierra de Andía.

Mas estando muito perto de Goñi e querendo se afastar, ele se dirigiu para o Monte Aralar.

Subiu as encostas da imensa massa e chegou a algumas falésias.

Havia uma caverna profunda, onde, segundo a crença generalizada, vivia um monstro terrível.

Teodosio subia lentamente, arrastando a corrente, da qual, para sua grande alegria, havia saído um elo, que se prendeu numa árvore, quando saiu das montanhas perto de Goñi.

Santuário de São Miguel de Aralar
Santuário de São Miguel de Aralar
O infeliz penitente estava pensando nisso, quando de repente ouviu um tremendo rugido e encontrou um dragão horrível no meio do caminho que ameaçava despedaçá-lo entre suas garras afiadas.

— São Miguel valei-me! exclamou Teodósio, apavorado.

E imediatamente os céus se abriram, no meio de uma grande luz, e apareceu São Miguel, que destruiu o dragão, exclamando em língua navarra: Nor laungokoia bezala? (“Quem como Deus?”).

Nesse instante a pesada corrente que prendia a cintura de Teodósio caiu quebrada no chão. Deus havia perdoado o penitente.

Cheio de alegria, Teodosio voltou para Goñi, onde encontrou sua esposa, que ficou radiante ao saber do ocorrido.

E, cumprindo a vontade do Papa, que mandara Teodósio erguer ali uma igreja onde caíram as suas correntes, construíram uma capela em honra de São Miguel.

E ficaram morando ali como eremitas e sendo sepultados, à sua morte, junto à igreja.

Diz-se que seu túmulo está sob uma coluna, à direita do pórtico.


(Fonte: Leyendas de Navarra) 


CRUZADAS CASTELOS CATEDRAIS HEROIS ORAÇÕES CIDADE SIMBOLOS
AS CRUZADASCASTELOS MEDIEVAISCATEDRAIS MEDIEVAISHERÓIS MEDIEVAISORAÇÕES E MILAGRES MEDIEVAISA CIDADE MEDIEVALJOIAS E SIMBOLOS MEDIEVAIS

domingo, 5 de março de 2023

A fada do castelo de Gratot

E o jovem senhor ficou louco pela moça
que só tinha uma coisa esquisita.
Très Riches Heures du duc de Berry, Museu de Chantilly
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs






No antigo Condado de Normandia, perto da cidade de Coutances, morava um jovem da nobre família de Argouges.

Esse forte e brilhante cavalheiro adorava passear a cavalo horas a fio.

Um belo dia, próximo de um pequeno lago, ele ouviu um canto melodioso que provinha de uma voz doce.

Avançando lentamente, encontrou uma bela dama junto às águas límpidas.

Tão suaves eram seus gestos, tão charmosa sua voz, e tão rara e irreal sua beleza, que o jovem foi logo conquistado por ela.

– “Bom dia... eh ... bela senhorita.

– “Oh, o senhor me pegou de surpresa.

– “Quer dizer... por favor...

– “Não vos escuseis, meu senhor, eu não deixo de cumprir todas as regras. Bom dia, nobre senhor.

– “Bom... eu diria...

– “Hi hi hi hi, o senhor me faz rir com os seus tartamudeios.

– “Bela senhorita, quereis casar comigo?

– “Antes de vos dizer SIM, quero um favor.

– “Farei tudo o que seja de vosso prazer, minha amiga.

– “Eu vos peço de jamais pronunciar na minha presença esta palavras: M.O.R.T.E.

– “Mas por quê?

– “Prometei-me isso e eu me casarei com o senhor.

– “Vossos desejos são ordens!

O castelo de Gratot hoje está em ruínas.
O castelo de Gratot hoje está em ruínas.
Ambos viveram sete anos na maior das felicidades.

Certa noite, eles organizaram uma festa no castelo.

A fada – pois era disso que se tratava – ficou demorando muito diante do espelho.

Perdendo a paciência e enfurecido pela demora da bela esposa, o senhor gritou, desde um dos extremos do corredor:

– “Minha Senhora, vós sois muito lenta nos vossos afazeres! Seríeis rápida em pedir a morte?

A fada soltou então um berro desgarrador, subiu na beira da janela e desapareceu, deixando impresso no muro a marca de seu pé e de sua mão.

No lago só se viam ondas circulares.

Se nas noites de tempestade, perto das antigas residências dos senhores de Argouges e do castelo de Gratot, ouvirdes uma voz murmurar “Morte... Morte...”, não fiqueis apavorados, pois é a fada a infestar aqueles locais.

E, sobretudo, antes de se casar, considerai fazê-lo com moças de famílias bem conhecidas, e não com qualquer uma, que seduz e depois se revela uma fada esquisita, ou uma bruxa.



CRUZADAS CASTELOS CATEDRAIS HEROIS ORAÇÕES CIDADE SIMBOLOS
AS CRUZADASCASTELOS MEDIEVAISCATEDRAIS MEDIEVAISHERÓIS MEDIEVAISORAÇÕES E MILAGRES MEDIEVAISA CIDADE MEDIEVALJOIAS E SIMBOLOS MEDIEVAIS

domingo, 26 de fevereiro de 2023

“Sem calar nem tardar” (Cantiga 380)

“Sem calar nem tardar”
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs





Esta Cantiga é em louvor de Santa Maria.

Sem calar nem tardar, todos os homens devem louvar a Virgem Maria.

Porque Ela não tarda a nos libertar da prisão dos nossos pecados; onde fomos cair pelo mal de Eva.

Mais ainda, Ela nos limpa do pecado, alimentando nossas almas para crescermos e chegar até o trono de Deus.

E para que possamos amar melhor os outros, devemos render a Ela ainda mais tributo.

Procedamos ao longo da vida sob seu olhar vigilante, que sempre está querendo o bem para nós.

E sentiremos sua poderosa ira quando alguém se atreve a misturar o piedoso com o profano, ofendendo ao Todo-Poderoso.

Àqueles de nós que pertencemos a Ela, Ela afasta bem longe das tentações do mal.

Porque Ela é a Mãe de Deus, que nos ajuda quando nos afastamos d’Ele e por tolice tentamos fazer o mal ao nosso próximo.

Então somos atraídos de volta para Ela, e por Ela nos são perdoados os erros que fazemos todos os dias.

Nós temos muita razão para louvá-la, porque Deus A fez melhor do que tudo o que existe nesta terra. Sem dúvida, Ela não tem par.

E quem pode dizer quão grande será a nossa recompensa quando cantamos seus elogios tão facilmente como o trovador que canta quando lhe agrada?

Assim confirmo que nunca deixarei de pedir a sua bênção.

Rezo para que em seu serviço Ela vá me dar o lugar onde eu quero estar, para que eu possa exaltar e cantar os louvores das virtudes de Maria.


“Sem calar nem tardar”





CRUZADAS CASTELOS CATEDRAIS HEROIS ORAÇÕES CIDADE SIMBOLOS
AS CRUZADASCASTELOS MEDIEVAISCATEDRAIS MEDIEVAISHERÓIS MEDIEVAISORAÇÕES E MILAGRES MEDIEVAISA CIDADE MEDIEVALJOIAS E SIMBOLOS MEDIEVAIS

domingo, 12 de fevereiro de 2023

O noivo do outro mundo

A despedida, quadro de Augusto Ferrer-Dalmau
A despedida, quadro de Augusto Ferrer-Dalmau
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs





Na cidade navarra de Aranaz vivia uma bela moça que ia se casar com um jovem trabalhador e honesto, vizinho da mesma aldeia.

Os dois se amavam ternamente desde crianças, e sendo essas relações do agrado dos pais, logo marcaram a data do casamento para o outono seguinte, quando estaria terminada a colheita.

Mas o jovem foi convocado para a guerra. Despediu-se da namorada com muita emoção e, triste e abatido, partiu para alistar-se no seu batalhão, que marchava para o combate.

Ele participou de várias batalhas, mostrando grande heroísmo, e logo foi designado para uma força de choque.

Essa sitiou uma cidade inimiga e, como não se rendeu, tiveram que atacar após um longo cerco.

Houve um combate sangrento, corpo a corpo, e finalmente a praça caiu nas mãos das forças atacantes, o chefe dando a ordem de “saquear livremente”.

Todos os soldados correram para revistar as casas, apreendendo todos os objetos que encontraram.

O soldado navarro tornou-se proprietário de um cálice e outros objetos de grande valor, guardando-os no maior segredo e enterrando-os debaixo de uma rocha, para os levar de volta à cidade quando retornasse.

O tempo passou e ele continuou a entrar em combates, livrando-se, com grande fortuna, de todos os perigos.

Mas em um ataque feroz, ele recebeu uma bala no coração e o namorado de Aranaz foi deixado morto no campo de batalha.

Aranaz, a cidade onde se conta a lenda
Aranaz, a cidade onde se conta a lenda
Enquanto isso, em sua cidade, a moça, que não havia recebido notícias do noivo e já cansada de esperá-lo, aceitou um novo pretendente que se apresentou a ela e casou-se com ele em pouquíssimo tempo.

A mulher estava angustiada desde que se casou, com grande pesar por ter feito isso, porque todas as noites seu antigo namorado aparecia para ela vindo do outro mundo.

Por causa de seu terror, ela não ousou perguntar nada a ele, nem a aparição falou com ela.

Assim passaram dias e dias de profunda angústia sem que ela ousasse contar a ninguém e sem saber o que fazer para se livrar daquela aparição que lhe estava tirando a tranquilidade e a vida.

Sua cor estava desaparecendo e sua saúde estava piorando.

Por fim resolveu procurar um remédio e consultou o frade de Bera, que tinha grande fama de sábio.

A mulher contou ao frade as misteriosas aparições de seu ex-namorado do outro mundo.

Não podia entrar no Céu enquanto o Cálice roubado não fosse devolvido
Não podia entrar no Céu enquanto o Cálice roubado não fosse devolvido
E o frade aconselhou-a a controlar o pânico e, fingindo estar o mais calma possível, dizer-lhe, quando aparecesse, usando o nome familiar: “Se vens de boa, diz o que queres; se for ruim, afunda no abismo”.

A mulher voltou para sua cidade, repetindo a frase pelo caminho, e uma vez em sua casa, ela esperou calmamente que ele aparecesse.

Ela começou a andar pela casa e o noivo logo apareceu diante dela.

Ela, controlando-se, soube falar: “Se és do bom partido, fala; se não, afunda”.

Ele, com uma voz de além-túmulo, respondeu:

“Eu sou bom e estou no céu.

“Mas Deus ordenou-me que voltasse à terra, porque roubei um cálice que enterrei debaixo de uma rocha.

“E só posso entrar no Céu quando o restitua.

“Por Deus, te peço que o devolvas”. E no momento desapareceu.

A mulher foi referir ao frade a resposta da aparição, e com a ajuda dele conseguiu achar o cálice e devolvê-lo, recuperando assim a paz de espírito e a saúde.