domingo, 20 de fevereiro de 2022

O rapaz estrangulado pelo demônio

Detalhe do Juízo Final na fachada de Notre Dame de Paris
Detalhe do Juízo Final na fachada de Notre Dame de Paris
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs




Dois estudantes, dando-se mais à vadiação do que aos estudos, resolveram ir passar a noite numa casa suspeita.

Por um resto de pudor, porém, um deles desistiu e ficou na pensão, indo só o outro.

Na hora de deitar-se, segundo o seu hábito, o primeiro rezou ao pé da cama três Ave-Marias.

Era um costume de família, que manteve no colégio onde fez seus preparatórios.

Logo que se deitou, ouviu umas pancadas na porta, e o seu infeliz companheiro apareceu no quarto. Que mudança!

Que rosto lívido!

— Que lhe aconteceu? — perguntou.

Diabo. Hans Memling (1430/1440 — 1494)
— Ah! Meu amigo, que infelicidade a minha! Ao sair de casa, fui agarrado por um demônio e estrangulado no meio da rua. Meu corpo está na calçada, e minha alma no inferno. Esperava-te a mesma sorte, mas Nossa Senhora te poupou esta infelicidade, pelas Ave-Marias que rezaste. Feliz serás, se aproveitares este aviso que a Mãe de Deus te dá por minha boca.

Dito isto, a visão desapareceu. O moço desatou em prantos e agradeceu à sua Benfeitora por tamanho favor.

Pediu-lhe força e coragem para mudar de vida.

De manhã cedo, encaminhou os passos para o convento dos Franciscanos, pedindo ser admitido sem demora na Ordem.

Conhecendo-lhe a vida desregrada, o Superior não acedeu ao seu desejo.

Porém, depois que o moço narrou o acontecido, dois religiosos foram mandados para averiguar a verdade.

Com efeito, acharam o corpo do infeliz moço, com o rosto enegrecido como carvão.

O postulante foi então admitido ao noviciado. Tornou-se religioso exemplar e foi enviado às Índias para pregar o Evangelho.

Terminou a vida derramando seu sangue no martírio.




(Fonte: S. Afonso de Ligório, apud "Maria ensinada à mocidade" - Livraria Francisco Alves, Rio, 1915)



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Os três pássaros de argila

Santa Maria dos Reis, Laguardia, Espanha
Santa Maria dos Reis, Laguardia, Espanha
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
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diversos blogs








Antigamente o lago de Tiberíades não tinha esse nome. Foi somente algum tempo depois do fato que eu vou contar, que o filho do cruel Herodes construiu às suas margens a cidade que ele chamou Tiberíades, para fazer a sua corte.

O belo lago chamava-se Kinnereth, que quer dizer harpa, porque seus contornos harmoniosos dão exatamente a forma do instrumento musical tão familiar ao rei David.

Naqueles dias, após uma grande tempestade na montanha, caía a tarde e o vento levava a última nuvem.

O lago retomava sua calma habitual, e os numerosos pássaros que o visitam freqüentemente — corvos-marinhos, pelicanos, gaivotas, alciões, martins-pescadores — haviam, do modo mais belo, começado seus vôos e seus cânticos.

Na aldeiazinha de Nazaré, três crianças brincavam numa estrada, muito ocupadas em construir uma parede ou barragem para conter a água do caminho.

Depois, assim que esboçaram um pequeno lago parecido com o Kinnereth, tiveram a idéia de povoá-lo também de pássaros — pássaros de argila, claro.

Um deles fez qualquer coisa disforme, que tinha a pretensão de assemelhar-se a esses belos corvos-marinhos de grandes asas, que vêm de longe para caçar seus peixes.

O outro procurava transformar seu barro em pelicano, e fazia grande esforço para manter equilibrada a cabeça enorme e a bolsa suspensa ao pescoço.

O terceiro aperfeiçoava, com a delicadeza de suas mãozinhas, uma gaivota colocada na margem.

Entretanto anoiteceu. A Lua já se fazia ver, e as primeiras luzes se acendiam na aldeia.

Indiferentes à escuridão que os envolvia, os meninos prosseguiam seus delicados trabalhos,

Mas de repente ouviu-se uma voz chamando alguém:

— Lucas!

Lucas ainda não se mexeu. Foi preciso que sua mãe o chamasse mais uma vez.

Lucas, que pela segunda vez tentava equilibrar o bico do corvo-marinho sobre o bastão que lhe servia de pescoço, estava muito entretido em seu trabalho, para responder ao chamado.

— Lucas! Lucas! Lucas! — repetiu a voz.

E desta vez, afinal, de má vontade, decidiu-se a abandonar seu pobre corvo-marinho.

Assim que ele saiu, aquela obra-prima desmoronou e deixou de ser um corvo, mesmo de barro.

— Marcos! — chamou logo depois uma outra voz no crepúsculo.

— Já vou! Já vou! — respondeu ele. Mas não se mexeu, tentando reparar rapidamente a catástrofe.

— Marcos! Marcos! — retomou a voz, impaciente e com um certo azedume.

E também foi preciso que a mãe o chamasse uma terceira vez.

Desta vez Marcos obedeceu, não sem ter dado um pontapé em sua obra-prima, jogando-a dentro d’água, encolerizado.

Ficou apenas à margem do lago, ou do pequeno mar, iluminado pela Lua, o terceiro menino, que alisava sua gaivota de argila.

— Jesus! — chamou uma mulher na soleira da porta.

A voz muito doce encheu a noite, como um perfume o faria.

Logo o menino se levantou, deixando sua gaivota de barro.

E a gaivota de barro voou.



(Fonte: Jérome Tharaud, "Les contes de La Vierge" - Plon, Paris)



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domingo, 13 de fevereiro de 2022

A ponte e a haste da Cruz

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
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Conta-nos uma lenda de antanho que, a um homem que deveria fazer grande jornada, deram a carregar pesada cruz, dizendo-lhe que ela o levaria à salvação.

Tendo feito pequena parte do trajeto, vencido e desanimado pelo cansaço, deliberou ele cortar um pedaço da longa haste de sua carga.

Mais aliviado, pôs-se de novo a caminho, e jornadeou até o ponto em que a estrada subia por uma encosta longa e pedregosa.

Ali sentiu mais o peso da cruz.

Doíam-lhe os ombros, tinha as pernas trôpegas, arfava e suava.

Na irreflexão da impaciência, pôs o seu fardo no chão, e outra vez o mutilou.

Partiu. Alcançou o sopé do outeiro, e se viu às margens de um rio sem ponte.

Só então observou que outros viajantes ali chegados levavam também pesadas cruzes de longas hastes.

Mas estes, mais resistentes e tolerantes, conservaram suas cruzes intactas.

Estenderam as cruzes de margem a margem, e fazendo-as de pontilhões, atingiram o lado oposto, e lá se foram.

O que encurtara a haste de sua cruz viu, desde logo, que ela não lhe poderia prestar o mesmo auxílio.

Tentando meter-se pelo rio a dentro, desapareceu, levado pelos redemoinhos da correnteza.

É límpida a lição da fábula.

Todos os que vivemos a cortar, com golpes arbitrários, em nossos deveres e obrigações para com Deus, podemos levar, por algum tempo, vida mundanamente fácil, mas sempre enganosa.

O dia chegará em que seremos vítimas das mutilações feitas na haste da nossa cruz.



(Malba Tahan, "Lendas do Céu e da terra" - Borgoi, SP, 1939)



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