O diabo bruxo mentiroso Cherren fixou seu trono no inferno. Codex Gigas, f. 290r., século XIII, Bohemia (Biblioteca Nacional da Suécia, Estocolmo) |
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de política internacional, sócio do IPCO, webmaster de diversos blogs |
O diabo Cherren, bruxo e mentiroso, havia estabelecido seu trono no inferno.
Ali ele explicava sua ciência mágica a vários discípulos, entre os quais assistiam Dom Juan de Atarrabio e o frade de Bera.
Por um certo tempo ele ensinava gratuitamente, e quando já estavam instruidos, pedia como pagamento por suas doutrinas que um deles ficasse no inferno.
Para realizar esse desejo, eles deveriam concordar e decidir quem iria ficar.
Ninguém ficou voluntário para morar no inferno, e todos alegaram a necessidade de voltar para a terra, onde seus parentes os aguardavam.
Terminadas as aulas, o diabo novamente exigiu que um deles ficasse.
Mas, fingindo-se distraídos, saíram do inferno em fila, por uma porta estreita, e o diabo, na saída, agarrou-os, perguntando um a um:
“Você fica?” Todos lhe respondiam muito alarmados: “Pegue aquele que vem atrás de mim.”
Atarrabio saiu por último, e quando foi apanhado pelo demónio, disse-lhe, como os anteriores: “Agarra aquele que vem atrás.”
O demônio, vendo uma sombra, e tomando-a por outro aluno, nela mergulhou sua espada, deixando a sombra de Atarrabio cravada no chão pelo poder do demônio, enquanto ele escapava sem ela.
Atarrabio terminou sua carreira como sacerdote e foi enviado para cumprir sua sagrada missão na paróquia de Goñi; mas continuou sem sombra, pois a tinha deixado no inferno.
Mas, a partir desse momento, ficou sem ela novamente, o que preocupou muito Atarrabio, que não queria morrer e aparecer sem sombra no outro mundo.
O padre morava com a mãe, já idosa, e uma tarde quando ela ia tirar uma soneca, viu que o céu começava a escurecer, cobrindo-se de nuvens negras que ameaçavam uma chuva de granizo.
Atarrabio disse à mãe: “Se você vir as nuvens chegando, me chame antes que comece a trovejar.”
Mas a mãe se descuidou e o acordou tarde, quando a nuvem já estava sobre a cidade, e os aldeões, muito assustados que caisse pedra em seu trigo, que naquele ano estava muito viçoso.
O padre vestiu-se às pressas e foi para o campo, levando na mão um livro de bençaos e uma cruz para afastar o tempo nublado.
O diabo apareceu entre duas nuvens negras e disse: “Olha que belos cavalos tenho para estragar o teu trigo.”
Ao que o padre respondeu: “olha que freios bons para domar teus cavalos”.
O padre começou a ler os feitiços contra a nuvem no livro ritual que trouxe do inferno, desviando-a da cidade e fazendo-a descarregar, perto do cemitério, em um campo onde havia muitos barris, que estavam cheios de pedras.
Ele soube outro dia, por inspiração divina, que o Santo Padre estava em grave perigo, lidando com algumas pessoas perversas, e que precisava de sua ajuda.
O Pe. Atarrabio se relacionava com os demônios em sua paróquia. (Frei Jacobus). Cúpula no mosaico do Batistero de São João, Florença |
Eles foram imediatamente à sua convocação e ele perguntou quanto tempo levaria para transportá-lo para Roma.
O primeiro respondeu que o levaria dentro de um quarto de hora, o que pareceu muito tempo ao padre; o segundo disse que levaria cinco minutos, e o padre também não aceitou, e o terceiro disse que levaria em um momento, e ficou com ele.
Ofereceu-lhe como pagamento da viagem, que lhe desse a flor da sua refeição, e o diabo aceitou.
E montado nele, se elevou no ar.
Ao passar sobre o mar, o diabo tentou jogá-lo na água para afogá-lo e disse-lhe: “Qual é esse doce nome que vocês, cristãos, pronunciam?”
Atarrabio, para toda a resposta, disse: “Cala-te, diabo.”
Ele chegou às portas do palacio do Pontífice; mas os guardas não o deixaram entrar.
Por mais que insistisse ele teve que se contentar em entregar uma varinha a um criado, incumbindo-o de medir com ela a mesa do Papa.
A varinha tinha uma cruz e, ao entrar na sala com ela, os personagens sinistros, que eram demônios, desapareciam.
O Papa perguntou quem havia lhe dado aquela vara e ordenou que o padre entrasse.
Mas quando o criado saiu para chamá-lo, Atarrabio já havia saído e estava a meio caminho de sua aldeia.
O padre ficou presa do desespero. Lúcifer segundo uma gravura do Codex Altonensis, Bibliotheca Gymnasii Altonani (Hamburg), século XIV |
A mãe não acreditou e Atarrabio disse-lhe: “É tão verdadeiro como o galo assado que tens para comer corvos.” E logo o galo que estava na panela começou a levantar-se e a cantar.
O padre ordenou à mãe que lhe preparasse comida com dez nozes, e as cascas foram dadas ao diabo como pagamento por levá-lo a Roma.
Só a recuperou quando celebrou a santa missa, no momento solene da consagração, enquanto elevava o Santíssimo Sacramento. Foi assim.
Porém, vendo que não conseguia recuperar a sua sombra, pediu ao sacristão que o matasse na hora da elevação na missa, e que lhe arrancasse o coração e o pusesse, furado, num pau, à porta da igreja.
Se alguns corvos o levavam, era porque ele havia sido condenado, e se uma pomba o pegava, era sinal de que havia sido salvo.
O sacristão pegou uma grande maça, e enquanto o padre rezava a missa, esperou que sua sombra caísse no chão, e nesse momento crítico desferiu um forte golpe na cabeça, deixando-o caído morto.
Depois, como lhe fora ordenado, tirou o coração, pregou-o num pau, deixando-o à porta da igreja, e ali ficou a ver quem o levaria.
Logo um bando de corvos chegou e começou a voar em círculos sobre o coração.
Mas de repente apareceu uma pomba pequena e muito branca, que se lançou sobre ele, levando-o pelos ares, e o sacristão ainda pôde ver como ela subia ao céu.
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