domingo, 17 de novembro de 2024

O vilão que conquistou o Paraíso

Queda dos anjos rebeldes. Pieter Bruegel o Velho (1525-1569), Royal Museums of Fine Arts, Bruxelas
Queda dos anjos rebeldes. Pieter Bruegel o Velho (1525-1569),
Royal Museums of Fine Arts, Bruxelas
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs






Um vilão morreu, e com ele aconteceu o que nunca havia acontecido antes e seguramente jamais voltará a acontecer: ninguém ficou sabendo da sua morte, nem no Céu nem no inferno.

Como pôde acontecer isso, não sei.

Sei com segurança é que, no momento em que a alma dele se separou do corpo, não havia por ali nem anjos nem diabos para recolhê-la, e com isso o pobre homem ficou sem guia.

E também não havia ninguém com atenção posta nele, para proibi-lo de fazer o que bem entendesse com a sua alma, de modo que resolveu por sua própria conta e risco tomar o caminho do paraíso.

São Miguel Arcanjo,  Jacopo Torriti  (1267-1292) Grenoble, Musée des Beaux Arts
São Miguel Arcanjo,
Jacopo Torriti  (1267-1292)
Grenoble, Musée des Beaux Arts
Não conhecia o caminho, mas viu de longe o arcanjo São Miguel conduzindo uma alma, e o seguiu despistadamente, como quem não quer nada.

Chegou à porta do Céu junto com São Miguel. São Pedro, ouvindo que o chamavam, abriu a porta e deixou que entrassem o anjo e seu convidado.

Quando viu do lado de fora o vilão sozinho, repreendeu-o:

— Aqui não se entra sem acompanhante, e além disso não queremos saber de vilões. Portanto, suma-se!

— Como ousais chamar-me de vilão? Vilão sois vós, e grandíssimo vilão. Depois de negar três vezes a Nosso Senhor, ainda vos acreditais com direito de impedir a entrada de um cidadão honrado num lugar onde nem deveríeis estar?

Isso é conduta para um apóstolo? Como é que Deus foi consentir em entregar a guarda do paraíso a quem age dessa maneira!

São Pedro não estava acostumado a ouvir sermões como esse, e ficou tão desnorteado que correu para dentro, sem nada responder.

Encontrou São Tomé e lhe contou a vergonha que acabara de passar.

— Deixe isso comigo — respondeu São Tomé. — Vou ver esse mendigo, e logo o despacharei.

Aproximou-se da porta e falou duramente ao vilão:

— Como ousas apresentar-te no lugar dos escolhidos, onde jamais entrou quem não fosse mártir ou confessor?

— Ah! É o senhor que vem me dizer isso? E o que está o senhor fazendo aí dentro?

Um homem sem fé, que não acreditou na Ressurreição do Senhor, duvidando da palavra de pessoas dignas de crédito.

E ainda precisou tocar nas chagas do Ressuscitado, para poder acreditar. Se gente tão descrente como o senhor entra aqui, por que não posso entrar eu, que sempre tive fé?

São Tomé baixou a cabeça, envergonhado, e voltou aonde estava São Pedro. São Paulo, que passava por ali, ouviu as lamentações dos dois apóstolos e se aproximou.

Fizeram-lhe um relato do acontecido, e então ele disse aos dois apóstolos desapontados:

— É que não sabeis fazer as coisas direito. Vou já acertar o passo desse vilão.

São Paulo, igreja de Santa Cecília, SP
São Paulo, igreja de Santa Cecília, SP
Foi até a porta com passo decidido, pegou o vilão pelo braço e quis forçá-lo a sair aos empurrões.

O vilão resistiu e lançou em rosto de São Paulo:

— Não me estranha nem um pouco essa brutalidade num homem como o senhor, perseguidor de cristãos que nunca escondeu sua tirania.

Para convertê-lo, foi necessário que Deus demonstrasse tudo o que sabe fazer, em matéria de milagres, e ainda assim o senhor foi um revoltoso, discutindo com um superior que era São Pedro.

Mesmo não sendo eu Santo Estêvão nem nenhum dos bons cristãos que o senhor torturou, deixe estar, que eu o conheço muito bem.

Apesar da segurança que São Paulo havia inicialmente demonstrado, desconcertou-se tanto quanto os outros.

Achou melhor juntar-se a eles, e combinaram de ir queixar-se a Deus.

Como chefe dos apóstolos, São Pedro tomou a palavra diante de Nosso Senhor, para pedir justiça.

Terminou dizendo que a insolência do vilão o deixara tão envergonhado, que não se atrevia a voltar ao seu posto enquanto o insolente se encontrasse ali.

— Eu mesmo irei falar com esse homem — disse Nosso Senhor.

Ao chegar diante da porta, Nosso Senhor perguntou ao vilão:

— Por que o senhor compareceu sem a companhia de um anjo? Aqui só se entra acompanhado, e além disso o senhor não tem o direito de insultar os meus apóstolos.

— Senhor, vossos apóstolos quiseram afastar-me, e eu acho que tenho tanto direito de entrar quanto eles, pois não vos reneguei, não duvidei da vossa Ressurreição nem apedrejei ninguém. Sei que ninguém é recebido aqui sem passar por um julgamento, e por isso quero me submeter ao vosso.

Juízo Final, catedral de Conques, França
Juízo Final, catedral de Conques, França
“Vós me fizestes nascer na pobreza, suportei minhas penas sem queixar-me e trabalhei toda a minha vida.

“Ensinaram-me a crer em vosso Evangelho, e eu acreditei. Fiz tudo o que me disseram que devia fazer.

“Dei esmolas aos que eram mais pobres do que eu e reparti o meu pão com eles.

“Confessei-me e comunguei quando o vigário mandou, e ele me disse que quem vive assim ganha o Céu.

“Por fim me fizestes entrar para ser interrogado, e aqui vou ficar, pois vós mesmo elogiastes no Evangelho uma que “escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada”, e não podeis voltar vossa palavra atrás.

— Muito bem, podes ficar! Sem dúvida ganhaste o Céu pelos teus discursos, que enunciaste de modo convincente. Esta é a vantagem de ter frequentado boa escola.

(Fonte: Jakes de Basin, in R. Menéndez Pidal, Antología de cuentos – Labor, Barcelona, 1953)


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domingo, 3 de novembro de 2024

A lenda de Santo Elígio

Deus Pai e Deus Filho, Sevilha, Espanha
Deus Pai e Deus Filho, Sevilha, Espanha
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
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sócio do IPCO,
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Um dia estava o Senhor Deus todo pensativo no Céu. Tanto que Jesus lhe perguntou:
— Que é que tendes, meu Pai?
Respondeu o Senhor:
— Olha lá no fundo.
— Onde?
— Lá em baixo: Vês naquela vila, numa das últimas casas, aquela grande e bela oficina de ferrador?
— Vejo.
— Pois bem. Lá está uma criatura que eu quisera salvar. Chama-se Elígio. É sem dúvida um homem bom, obediente às minhas leis, caridoso com os pobres, pronto para servir a todos. Da manhã até à meia-noite ele está sempre aplicado ao trabalho, sem que jamais escape de sua boca uma blasfêmia ou uma palavra suja. Parece-me mesmo digno de tornar-se um grande santo.
Jesus perguntou:
— E que é que lho impede?
— O seu orgulho. É um artífice de primeiríssima ordem, mas está convencido de que não há no mundo quem seja capaz de superá-lo. E tu sabes que presunção significa perdição.
— Meu Pai, se consentis que eu desça à terra, tentarei a conversão dele.
— Pois vai, meu filho.

E Jesus desceu à terra. Vestiu um macacão de aprendiz de ferreiro, pôs nos ombros uma trouxa de ferramentas, e sem mais o divino operário pôs-se a caminho da oficina do Mestre Elígio. À entrada lia-se: "Ferrador Elígio, mestre dos mestres. Quase sem fogo bate qualquer ferradura".

O pequeno aprendiz chegou até à porta, e descobrindo a cabeça, exclamou:
— Bom dia, mestre! Bom dia a todos. Se precisam de um pouco de auxílio, estou pronto.
— Por enquanto, não — respondeu Elígio.
— Então adeus, mestre. Ficará para outra vez.

São Martim de Tours, Museu de Cluny, Paris
São Martim de Tours, Museu de Cluny, Paris
E Jesus continuou o seu caminho. Logo adiante topou com um magote de gente, e disse:
— Não pensei que numa oficina, onde deveria haver muito trabalho, recusassem meu serviço.
— Escuta, rapaz — disse um do grupo: — ao chegar, como foi que saudaste ao Mestre Elígio?
— Como saúdam todos: Bom dia, mestre, e a toda a companhia.
— Não, não era esse o modo de saudar. Precisava chamá-lo mestre dos mestres. Não viste o que está escrito sobre a porta?
— É verdade — disse Jesus. — Vou tentar novamente.

Voltou à oficina e disse:
— Senhor mestre dos mestres, o Sr. não precisaria de um ajudante?
— Entre. Trabalho haverá para ti também. Mas lembra-te bem do que te digo uma vez por todas: Quando me saudares, deves chamar-me mestre dos mestres. Não é por orgulhar-me, mas homens como eu, que com duas escaldaduras batem qualquer ferradura, em toda esta terra não se encontram.
— Na minha terra bate-se com uma escaldadura apenas.
— Com uma só? Ah! meu rapaz, não venhas contar-me lorotas.
— Pois bem, eu vos mostrarei se digo ou não a verdade, Sr. mestre de todos os mestres.
E Jesus tomou um pedaço de ferro, atirou-o ao fogo, soprou e atiçou as brasas. Quando o ferro estava em brasa, dispôs-se a pegá-lo com a mão.
— Pobre tonto! — gritou-lhe um dos presentes — tu queres te queimar?
— Não tenhais medo — replicou Jesus. — Graças a Deus, em nosso país não precisamos de tenazes.
Tomou com uma das mãos o ferro em brasa, colocou-o sobre a bigorna, e com o seu martelo bateu-o, deixando-o tão perfeito como ninguém fizera até então.

Mestre Elígio disse:
— Basta que eu queira, e sou capaz de fazer o mesmo.
E de fato tomou uma pedaço de ferro, lançou-o na forja, soprou e atiçou o fogo. Quando o ferro estava bem vermelho, quis pegá-lo para levá-lo à bigorna, mas queimaram-se-lhe os dedos. Quis fazê-lo depressa e resistir à dor, mas foi obrigado a largar o ferro e recorrer às tenazes. Entretanto, o ferro esfriou. O pobre Mestre Elígio fez força, bateu, suou, mas não conseguiu fazer o que fizera o rapaz.

— Escutem — diz o rapaz — parece-me que ouço o andar de cavalo.
Mestre Elígio correu à porta e viu um cavaleiro, que parou diante da oficina. Ora, convém saber que aquele cavaleiro era São Martinho. Ele cumprimentou e disse:
— Venho de muito longe, e o meu ginete perdeu um par de ferraduras. Preciso encontrar um ferrador.

São Elígio, santo bispo
São Elígio, santo bispo
Mestre Elígio, todo orgulhoso, assim lhe falou:
— Melhor do que aqui não encontrareis, senhor cavaleiro. Estais diante do melhor ferrador daqui e de toda a França. Pode-se dizer com verdade que ele é o mestre dos mestres. Rapaz, segura um pouco a pata do cavalo.
— Segurar a pata do cavalo? — observou Jesus. — Em nossa terra isso não é necessário.
— Esta agora é boa! — gritou mestre Elígio. — Como fazeis para ferrar um cavalo sem segurar a pata?

O rapaz tomou o puxavante, aproximou-se do cavalo, e com um golpe lhe cortou o casco, levou-o à oficina e apertou-o no torno. Depois limou o casco, aplicou-lhe a ferradura nova que acabara de bater, e com o martelo meteu-lhe os cravos. Em seguida desapertou o torno, levou o casco ao cavalo e adaptou-o bem. Fazendo um sinal da cruz, disse:
— Meu Deus, fazei que o sangue estanque.
E a pata do cavalo estava pronta, ferrada e segura, como jamais se vira igual. Enquanto o primeiro aprendiz arregalava os olhos, Mestre Elígio exclamou:
— Caramba! O mesmo hei de fazer eu também.

E pôs mãos à obra. Armado do puxavante, correu ao animal e cortou-lhe o pé. Levou-o para dentro, apertou-o no torno e meteu-lhe os cravos, tudo como fizera o rapaz. Depois — e aqui está o busílis — devendo colocar o pé no lugar, aproximou-se do animal e ajustou-o à perna do melhor modo que pôde. Mas... o sangue escorria, e o pé caiu no chão.

Agora a alma soberba de Mestre Elígio se achava confundida. Entrou na oficina, para ajoelhar-se aos pés do jovem, mas este desaparecera, como desapareceram o cavalo e o cavaleiro. O pranto inundou o coração do Mestre Elígio.

Reconhecera que acima dele, pobre mortal, havia outro Mestre que era inimitável. Tirou o avental de couro, abandonou a oficina e pôs-se a percorrer o mundo, anunciando a palavra de Nosso Senhor Jesus Cristo.


(Fonte: Pe. Francisco Alves, C.SS.R., "Tesouro de Exemplos" - Vozes, Petrópolis, 1960)



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domingo, 20 de outubro de 2024

O combate contra o gigante Ferragut


Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
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Terminada a conquista da região de Monjardin, anunciaram a Carlos Magno que em Najera havia um gigante da raça de Golias, chamado Ferragut.

Tinha vindo da Síria, enviado pelo emir de Babilônia com 20.000 turcos, para combater o monarca franco. Possuía o vigor de quarenta homens fortes. Media uns sete pés.

Quando o gigante se inteirou da chegada do Imperador, saiu alegre ao seu encontro e lhe propôs um combate singular. Um cavaleiro devia lutar contra ele.

Saiu primeiro Ojeros até Ferragut, e o gigante pegou-o com sua mão direita e o levou como uma ovelha até a cidade. Carlos mandou Reinaldo de Montalbán.

Tomando-o pelo braço, Ferragut o encerrou no cárcere da cidade. Tiveram idêntica sorte vários guerreiros. Carlos desistiu então da idéia de prosseguir a luta.

Roland pediu permissão ao Rei para medir as suas forças com o gigante.

O David franco se acercou de seu rival. Ferragut, tomando-o pela direita, o pôs ante si sobre o cavalo, conduzindo-o até a cidade para prendê-lo com seus compatriotas cristãos.

O franco, porém, com rapidez, conseguiu derrubar o gigante ao chão. Levantou-se com presteza e montou de novo em seu cavalo. Roland brandiu sua espada e descarregou um forte golpe para matar o seu adversário.

A força da espada partiu em dois o cavalo, e Ferragut proferia terríveis ameaças contra o franco. Começaram a lutar com a espada. Porém Roland conseguiu desarmá-lo.

O Golias sarraceno intentou matar Roland com um murro, mas a mão cerrada caiu sobre a cabeça do cavalo de Roland, matando-o e deixando o cristão em posição parecida com a de seu inimigo. Perdida a cavalgadura, a luta continuou durante toda a tarde. Fizeram uma trégua, e os dois prometeram continuar a luta no dia seguinte, sem cavalos nem lanças.

No dia seguinte nada pôde conseguir Roland em seus intentos, para ferir com paus e pedras o seu invulnerável inimigo. Fizeram novas tréguas. Ferragut caiu, dormindo no próprio campo de batalha.

Roland, como bom cavaleiro, pôs uma pedra sob a cabeça do gigante, para lhe servir de almofada e assim poder descansar melhor. As tréguas eram tempos sagrados.

Capitel do palácio dos reis de Navarra em Estella: momento em que Roland clava sua lança no umbigo do gigante islâmico Ferragut
Capitel do palácio dos reis de Navarra em Estella:
momento em que Roland clava sua lança no umbigo do gigante islâmico Ferragut
Quando Ferragut despertou, Roland sentou-se ao seu lado. Perguntou qual era a razão de sua invulnerabilidade, não sendo ele atingido por espadas, bastões ou pedras.
— Porque tan solo por el ombligo puedo ser herido — confessou o gigante, falando em espanhol.

Continuaram conversando longo tempo, interessando-se o gigante pela origem e religião do franco, que aproveitou a ocasião para evangelizar o pagão, fazendo uma minuciosa exposição dos dogmas cristãos.

A discussão teológica terminou com uma reação normal naqueles tempos: a verdade religiosa e a aceitação da fé ficou submetida ao resultado da batalha entre os dois campeões.
— Lutarei contigo — disse Ferragut — com a condição de que, se é verdadeira essa fé que sustentas, seja eu o vencido. E se é falsa, o sejas tu.

O cristão aceitou. O duelo feroz se iniciou logo depois. Um golpe de espada de Ferragut partiu em dois a arma de Roland. Ao vê-lo desarmado, o gigante avançou sobre ele, aplastando-o sob o peso de seu corpo.

Compreendeu Roland que não podia fugir, e invocando a Virgem, revolveu sob o ventre do opressor. Tomando então o punhal, cravou-lho no umbigo, fugindo imediatamente. Aos gritos do gigante invocando Maomé, acudiram os sarracenos, levando seu capitão a Najera.

Então as hostes cristãs atacaram os mouros perto do castelo que domina a povoação, conquistando a cidade e a fortaleza e pondo em liberdade os prisioneiros cristãos.

(José Maria Jimeno Jurio, "Leyendas del Camino de Santiago" - Diputación Foral de Navarra, 1977)


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domingo, 6 de outubro de 2024

O alcaide-mor de Faria, Nuno Gonçalves

Alcaide de Faria

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
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A breve distância da vila de Barcelos, nas faldas do Franqueira, alveja ao longe um convento de franciscanos. Aprazível é o sítio, sombreado de velhas árvores.

Sentem-se ali o murmurar das águas e a bafagem suave do vento, harmonia da natureza, que quebra o silêncio daquela solidão — a qual, para nos servirmos de uma expressão de Frei Bernardo de Brito — com a saudade de seus horizontes parece encaminhar e chamar o espírito à contemplação das coisas celestes.

O monte que se alevanta ao pé do humilde convento é formoso, mas áspero e severo, como quase todos os montes do Minho. Da sua coroa descobre-se ao longe o mar, semelhante a mancha azul entornada na face da terra.

O espectador colocado no cimo daquela eminência volta-se para um e outro lado, e as povoações e os rios, os prados e as fragas, os soutos e os pinhais apresentam-lhe o panorama variadíssimo que se descobre de qualquer ponto elevado da província de Entre-Douro e Minho.

Este monte, ora ermo, silencioso, e esquecido, já se viu regado de sangue; já sobre ele se ouviram gritos de combatentes, ânsias de moribundos, estridor de habitações incendiadas, sibilar de setas e estrondo de máquinas de guerra.

Claros sinais de que aí viveram homens, porque é com estas balizas que eles costumam deixar assinalados os sítios que escolheram para habitar na terra.

O Castelo de Faria, com suas torres e ameias, com sua barbacã e fosso, com seus postigos e alçapões ferrados, campeou aí como dominador dos vales vizinhos. Castelo real da Idade Média, a sua origem some-se nas trevas dos tempos que já lá vão há muito.

Mas a febre lenta que costuma devorar os gigantes de mármore e de granito, o tempo, coou-lhe pelos membros, e o antigo alcácer das eras dos reis de Leão desmoronou-se e caiu.

Ainda no século XVII parte da sua ossada estava dispersa por aquelas encostas. No século seguinte já nenhuns vestígios dele restavam, segundo o testemunho de um historiador nosso.

Um eremitério, fundado pelo célebre Egas Moniz, era o único eco do passado que aí restava.

Na ermida servia de altar uma pedra trazida de Ceuta pelo primeiro duque de Bragança, dom Afonso.

Era esta lájea a mesa em que costumava comer Salat-ibn-Salat, último senhor de Ceuta. Dom Afonso, que seguira seu pai dom João I na conquista daquela cidade, trouxe esta pedra entre os despojos que lhe pertenceram, levando-a consigo para a vila de Barcelos, cujo conde era.

De mesa de banquetes mouriscos converteu-se essa pedra em ara do cristianismo. Se ainda existe, quem sabe qual será o seu futuro destino?

O castelo de Faria, ruinas
Ruínas do castelo de Faria.
Serviram os fragmentos do Castelo de Faria para se construir o convento edificado ao sopé do monte. Assim se converteram em dormitórios as salas de armas, as ameias das torres em bordas de sepulturas, os umbrais das balhesteiras e postigos em janelas claustrais. O ruído dos combates calou no alto do monte, e nas faldas dele alevantaram-se a harmonia dos salmos e o sussurro das orações.

Este antigo castelo tinha recordações de glória. Os nossos maiores, porém, curavam mais de praticar façanhas do que de conservar os monumentos delas. Deixaram, por isso, sem remorsos, sumir nas paredes de um claustro pedras que foram testemunhas de um dos mais heroicos feitos de corações portugueses.

Reinava entre nós dom Fernando. Este príncipe, que tanto degenerava de seus antepassados em valor e prudência, fora obrigado a fazer paz com os castelhanos, depois de uma guerra infeliz, intentada sem justificados motivos, e em que se esgotaram inteiramente os tesouros do Estado.

A condição principal, com que se pôs termo a esta luta desastrosa, foi que dom Fernando casasse com a filha d’el-Rei de Castela.

Mas brevemente a guerra se acendeu de novo; porque dom Fernando, namorado de dona Leonor Teles, sem lhe importar o contrato de que dependia o repouso dos seus vassalos, a recebeu por mulher, com afronta da princesa castelhana. Resolveu-se o pai a tomar vingança da injúria, ao que o aconselhavam ainda outros motivos.

Entrou em Portugal com um exército e, recusando dom Fernando aceitar-lhe batalha, veio sobre Lisboa e cercou-a. Não sendo o nosso propósito narrar os sucessos deste sítio, volveremos o fio do discurso para o que sucedeu no Minho.

O adiantado de Galiza, Pedro Rodriguez Sarmento, entrou pela província de Entre-Douro e Minho com um grosso corpo de gente de pé e de cavalo, enquanto a maior parte do pequeno exército português trabalhava inutilmente ou por defender ou por descercar Lisboa.

Prendendo, matando e saqueando, veio o adiantado até às imediações de Barcelos, sem achar quem lhe atalhasse o passo; aqui, porém, saiu-lhe ao encontro dom Henrique Manuel, conde de Seia e tio d’el Rei dom Fernando, com a gente que pôde ajuntar.

Foi terrível o conflito; mas, por fim, foram desbaratados os portugueses, caindo alguns nas mãos dos adversários.

Entre os prisioneiros contava-se o alcaide-mor do Castelo de Faria, Nuno Gonçalves.

Saíra este com alguns soldados para socorrer o conde de Seia, vindo, assim, a ser companheiro na comum desgraça. Cativo, o valoroso alcaide pensava em como salvaria o castelo d’el-Rei seu senhor das mãos dos inimigos.

Monumento ao Alcaide de Faria Nuno Gonçalves e seu filho Gonçalo Nunes, Barcelos, Portugal.
Monumento ao Alcaide de Faria Nuno Gonçalves
e seu filho Gonçalo Nunes, Barcelos, Portugal.
Governava-o em sua ausência um seu filho, e era de crer que, vendo o pai em ferros, de bom grado desse a fortaleza para o libertar, muito mais quando os meios de defesa escasseavam. Estas considerações sugeriram um ardil a Nuno Gonçalves.

Pediu ao adiantado que o mandasse conduzir ao pé dos muros do castelo, porque ele, com suas exortações, faria com que o filho o entregasse, sem derramamento de sangue.

Um troço de besteiros e de homens de armas subia a encosta do monte da Franqueira, levando no meio de si o bom alcaide Nuno Gonçalves.

O adiantado de Galiza seguia atrás com o grosso da hoste, e a costaneira ou ala direita, capitaneada por João Rodriguez de Viedma, estendia-se, rodeando os muros pelo outro lado. O exército vitorioso ia tomar posse do Castelo de Faria, que lhe prometera dar nas mãos o seu cativo alcaide.

De roda da barbacã alvejavam as casinhas da pequena povoação de Faria, mas silenciosas e ermas.

Os seus habitantes, apenas enxergaram ao longe as bandeiras castelhanas, que esvoaçavam soltas ao vento, e viram o refulgir cintilante das armas inimigas, abandonando os seus lares, foram acolher-se no terreiro que se estendia entre os muros negros do castelo e a cerca exterior ou barbacã.

Nas torres, os atalaias vigiavam atentamente a campanha, e os almocadéns corriam com a rolda pelas quadrelas do muro e subiam aos cubelos colocados nos ângulos das muralhas.

O terreiro onde se haviam acolhido os habitantes da povoação estava coberto de choupanas colmadas, nas quais se abrigava a turba dos velhos, das mulheres e das crianças, que ali se julgavam seguros da violência de inimigos desapiedados.

Quando o troço dos homens de armas que levavam preso Nuno Gonçalves vinha já a pouca distância da barbacã, os besteiros que coroavam as ameias encurvaram as bestas, os homens dos engenhos prepararam-se para arrojar sobre os contrários as suas quadrelas e virotões, enquanto o clamor e o choro se alevantavam no terreiro, onde o povo inerme estava apinhado.

Um arauto saiu do meio da gente da vanguarda inimiga e caminhou para a barbacã, todas as bestas se inclinaram para o chão, e o ranger das máquinas converteu-se num silêncio profundo.
— Moço alcaide, moço alcaide! — bradou o arauto — teu pai, cativo do mui nobre Pedro Rodriguez Sarmento, adiantado de Galiza pelo mui excelente e temido dom Henrique de Castela, deseja falar contigo, de fora do teu castelo.

Gonçalo Nunes, o filho do velho alcaide, atravessou então o terreiro, e chegando à barbacã, disse ao arauto:
— A Virgem proteja meu pai. Dizei-lhe que eu o espero.

O arauto voltou ao grosso de soldados que rodeavam Nuno Gonçalves, e depois de breve demora o tropel aproximou-se da barbacã. Chegados ao pé dela, o velho guerreiro saiu dentre seus guardadores e falou com o filho:
— Sabes tu, Gonçalo Nunes, de quem é esse castelo que, segundo regimento de guerra, entreguei à tua guarda quando vim em socorro e ajuda do esforçado conde de Seia?
— É — respondeu Gonçalo Nunes — de nosso rei e senhor dom Fernando de Portugal, a quem por ele fizeste preito e menagem.
— Sabes tu, Gonçalo Nunes, que o dever de um alcaide é de nunca entregar, por nenhum caso, o seu castelo a inimigos, embora fique enterrado debaixo das ruínas dele?
— Sei, ó meu pai! — prosseguiu Gonçalo Nunes em voz baixa, para não ser ouvido dos castelhanos, que começavam a murmurar.
— Mas não vês que a tua morte é certa, se os inimigos percebem que me aconselhaste a resistência?

Alcaide de Faria
Nuno Gonçalves, como se não tivera ouvido as reflexões do filho, clamou então:
— Pois se o sabes, cumpre o teu dever, alcaide do Castelo de Faria! Maldito por mim, sepultado sejas tu no inferno, como Judas o traidor, na hora em que os que me cercam entrarem nesse castelo, sem tropeçarem no teu cadáver.
— Morra! — gritou o almocadén castelhano.
— Morra o que nos atraiçoou.
E Nuno Gonçalves caiu no chão, atravessado de muitas espadas e lanças.
— Defende-te, alcaide! — foram as últimas palavras que ele murmurou.

Gonçalo Nunes corria como louco ao redor da barbacã, clamando vingança. Uma nuvem de frechas partiu do alto dos muros; grande porção dos assassinos de Nuno Gonçalves misturaram o próprio sangue com o sangue do homem leal ao seu juramento.

Os castelhanos acometeram o castelo; no primeiro dia de combate o terreiro da barbacã ficou alastrado de cadáveres tisnados e de colmos e ramos reduzidos a cinzas. Um soldado de Pedro Rodriguez Sarmento tinha sacudido com a ponta da sua longa chuça um colmeiro incendiado para dentro da cerva; o vento suão soprava nesse dia com violência, e em breve os habitantes da povoação, que haviam buscado o amparo do castelo, pereceram juntamente com as suas frágeis moradas.

Mas Gonçalo Nunes lembrava-se da maldição de seu pai. Lembrava-se de que o vira moribundo no meio dos seus matadores, e ouvia a todos os momentos o último grito do bom Nuno Gonçalves: "Defende-te, alcaide!"

O orgulhoso Sarmento viu a sua soberba abatida diante dos torvos muros do Castelo de Faria. O moço alcaide defendia-se como um leão, e o exército castelhano foi constrangido a levantar o cerco.

Gonçalo Nunes, acabada a guerra, era altamente louvado pelo seu brioso procedimento e pelas façanhas que obrara na defesa da fortaleza cuja guarda lhe fora encomendada por seu pai no último transe da vida.

Mas a lembrança do horrível sucesso estava sempre presente no espírito do moço alcaide. Pedindo a el-Rei o desonerasse do cargo que tão bem desempanhara, foi depor ao pé dos altares a cervilheira e o saio de cavaleiro, para se cobrir com as vestes pacíficas do sacerdócio.

Ministro do santuário, era com lágrimas e preces que ele podia pagar a seu pai o ter coberto de perpétua glória o nome dos alcaides de Faria.

Mas esta glória, não há hoje aí uma única pedra que a ateste. As relações dos historiadores foram mais duradouras que o mármore.

(Alexandre Herculano, "Lendas e Narrativas")


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domingo, 22 de setembro de 2024

As três moças de São Nizier

Luis Dufaur
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Em Vercors, nos Alpes franceses, subindo ainda mais alto pelo lado da Torre Sans-Venin, hás três rochedos verticais que parecem estátuas e sobressaem na montanha.

Todos os habitantes de Grenoble conhecem esses três rochedos míticos que surgem altaneiros entre os picos de Vercors. Os alpinistas vencem muitos desafios quando conseguem escalá-los.

Eles são conhecidos como “as três moças de São Nizier”. Sabeis qual é a origem de seu nome tão curioso? Pois  Eis o que aconteceu:

Três moças muito belas e sobre tudo muito vaidosas viviam numa aldeia de Vercors.

Os seus costumes coquetes deixavam surpresos os habitantes do local que tinham muitas dificuldades para sobreviver cultivando aquela terra árida no verão e fria no inverno.

Num verão, enquanto todo mundo trabalhava duro nos campos, as três senhoritas passeavam pelas pradarias.

As "três moças de Saint Nizier"
‒ Oh!, exclamou uma delas, olhem! Com essas flores eu arranjarei um lindo vaso!

‒ Ah! com elas eu faria uma coroa para meus cabelos, disse uma outra.

‒ Olha! o vendedor ambulante de panos está vindo ai!

‒ Ah ! Sim, sim ! Vamos ver quais são as novas cores no seu carrinho!

E partiram com inteira despreocupação sem pensar nos perigos que poderiam acontecer.

Após terem descido a ladeira encontraram três malandros que as aguardavam. Eles avançavam gritando obscenidades irreproduzíveis.

‒ “Socorro! Ajuda!” gritou uma.

‒ “Fujamos logo”, disse outra.

‒ “Ah! se eu tivesse sabido...”, acrescentou a terceira.

As três vaidosas compreenderam tarde seu erro. E saíram correndo em direção da aldeia que ficava muito longe.

São Nizier.
São Nizier.
Mas as roupas prendiam nas pedras e os bandidos se aproximavam espertos, agressivos e velozes.

Percebendo que estavam perdidas, as três lembraram de invocar o Santo da paróquia.

São Nizier sempre foi muito solícito com seus devotos. Lá, do Céu estava vendo a cena e decidiu dar uma lição exemplar às três moças e que valesse para todas as coquetes que andam pelo mundo.

Todas elas ficariam sabendo que a despreocupação da descocada tem graves consequências.

São Nizier, em lugar de castigar os vagabundos, decidiu transformar as três moças em rochedos.

Os criminosos ficaram sem o que queriam.

As moças foram salvas.

Mas ficaram para sempre lá petrificadas lembrando às moças do vale para serem sérias, prudentes, laboriosas, e obedientes aos pais.




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