domingo, 30 de março de 2025

O vinho derramado

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs






Havia na Normandia um fidalgo bastante pobre, que só podia dispor de umas poucas moedas para comprar diariamente seu alimento.

Uma certa manhã, verificou que só tinha em casa um pão, e decidiu comprar um pouco de vinho com algumas moedas de pouco valor.

Foi à taberna próxima e pediu vinho.

O taberneiro, que era um homem grosseiro e desagradável, serviu-lhe de má vontade um copo de vinho. Colocou-o na mesa tão bruscamente, que derramou quase a metade.

 Em vez de desculpar-se, disse com insolência:

— O senhor está com sorte. O vinho derramado significa alegria e riquezas.

O fidalgo não quis protestar contra aquele mal educado, pois seria trabalho perdido. Mas achou que de algum modo deveria ajustar essas contas, e pediu que o taberneiro lhe trouxesse um pedaço de queijo.

O homem apanhou a moeda bruscamente e foi ao andar de cima buscar o queijo.

Enquanto isso o fidalgo levantou-se, abriu a torneira do tonel de vinho e deixou que ele escoasse livremente, formando uma lagoa vermelha no meio da taberna.

Quando o taberneiro voltou e viu o que acontecera, avançou furiosamente sobre o fidalgo.

Este se defendeu e conseguiu lançá-lo de encontro ao tonel, que caiu ao chão junto com seu dono, entornando o que restava do vinho.

Acudiram vizinhos e soldados, separaram os contendores e os levaram junto ao rei.

O taberneiro falou primeiro e pediu uma indenização.

Antes de dar a sentença, o rei quis ouvir também o fidalgo, que narrou o sucedido com toda a veracidade, e acrescentou:

“Senhor, este homem me disse, quando entornou a metade do vinho que me vendera, que isso era sorte minha, pois vinho derramado significa alegria, e que eu me tornaria rico.

“Pensei então que, se eu me tornaria rico por ter derramado só meio copo de vinho, o bom taberneiro se tornaria muito mais rico e feliz se derramasse meio tonel.

“Cheio de reconhecimento e gratidão, resolvi então abrir a torneira do tonel, e o resto já conheceis”.

O rei e toda a corte se divertiram com a engenhosa justificativa, e o fidalgo foi dispensado sem pagar a pretendida indenização.



(Fonte: Jakes de Basin, in R. Menéndez Pidal, Antología de cuentos – Labor, Barcelona, 1953)


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domingo, 16 de março de 2025

A caverna do jogo

Cruz do morro de La Beata, perto de Zamora
Cruz do morro de La Beata, perto de Zamora
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
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No morro de La Beata, perto da cidade de Zamora, há uma enorme cruz no topo, e também inúmeras lendas, como a história da entrada de uma cidade perdida e do ouro que se encontrado, você nunca deve pegar.

A história da Caverna do Eremita é uma das mais misteriosas. É transmitida entre os habitantes mais antigos e está na tradição oral.

Nas estranhas ravinas no sopé do morro de La Beata, um dia dois senhores de Jacona subiram a encosta para obter algumas batatas-doces, comuns naquela região.

Um deles saiu da trilha e depois de alguns metros encontrou uma caverna que todos nós podemos ver hoje.

Llá dentro encontrou dois senhores jogando cartas. Os estranhos habitantes o convidaram para participar da festa e lhe pediram que não tivesse medo.

O visitante hesitou um pouco, mas depois entrou na conversa e começou a rir com eles.

Porém, os dois homens permaneciam em silêncio, não falavam de nada.

O forasteiro fez perguntas para obter alguma informação sobre essas pessoas estranhas: seus nomes, onde trabalhavam, onde moravam, mas eles não responderam.

O silêncio ficou preocupante e ele não se sentia mais confortável. No final do segundo jogo de cartas ele saiu da caverna.

Lá fora, começou a procurar seu parceiro, mas não conseguiu encontrá-lo.

Quando estava começando a escurecer, decidiu descer e chegou à sua casa em Jacona.

Mas quando chegou, ficou surpreso ao ver que ela estava em ruínas.

Seus vizinhos não eram mais os mesmos e o quarteirão havia mudado muito.

Então ele se aproximou de um senhor e perguntou se ele sabia onde estavam a mulher e seus dois filhos que moravam naquela casa.

Os jogadores seduzidos pelo maligno
Os jogadores seduzidos pelo maligno
O velho respondeu que havia muitos anos aquela mulher perdeu o marido que fora em busca de batata-doce na colina de La Beata.

O marido nunca mais voltou e ela morreu pouco depois. Aquelas crianças cresceram, mas também acabaram morrendo.

O homem, surpreso com o que o velho estava lhe contando, confessou que a mulher e as crianças eram sua esposa e seus filhos.

Ele contou como subiu a colina e encontrou a caverna, onde jogou duas partidas de cartas e depois foi embora, sem perceber que quase cem anos haviam se passado.

O homem deixou Jacona e nunca mais se ouviu falar dele.

Hoje, quem conhece a lenda da Caverna do Eremita sabe que, se a encontrar, nunca deverá entrar, muito menos jogar cartas lá dentro, porque em poucos minutos vários anos terão passado irremediavelmente.

Eis a lição dos males que causam os vícios devoradores que fazem os homens esquecer a família e o tempo que mal gastam.


(Fonte: El Sol de Zamora, Espanha)

domingo, 23 de fevereiro de 2025

O banquete da marquesa de Falces

Quadro alegórico da marquesa de Falces, castelo de Marcilla
Quadro alegórico do feito da marquesa de Falces, castelo de Marcilla:
"Embora morta, ela vive"
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
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sócio do IPCO,
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Após a captura de Navarra por Fernando el Católico, começou a destruição sistemática de seus castelos.

A resistência oferecida pelos navarros os fez desistir de continuar a demolição, até que Don Hernando del Villar, um bravo guerreiro, mas feroz e rude, se ofereceu para realizá-la.

Nada resistia à loucura devastadora daquele que se tornara o terror dos navarros.

Apenas uma mulher, Dona Ana de Velasco, castelhana de Marcilla e marquesa de Falces, conseguiu deter a fúria de Don Hernando.

Sua figura lendária foi preservada desde então na memória do povo de Navarra.

Aqui está como a tradição conta o que aconteceu:

Quando a notícia da aproximação do feroz D. Hernando chegou ao castelo de Marcilla, a marquesa mandou fazer o abastecimento de comida e organizou a defesa.

Tudo foi feito às escondidas, para que quando don Hernando chegasse diante do castelo, nada denunciasse os preparativos que haviam sido feitos.

O rude guerreiro ficou surpreso ao ver que a mesma marquesa, vestida com seus mais ricos ornamentos, majestosa e sorridente, saiu para recebê-lo na entrada da ponte, com grande acompanhamento.

Deixou-se conduzir ao castelo, meio deslumbrado e meio surpreso com tão brilhante e amistosa recepção.

Lá o esperava o maior banquete que já conhecera em sua vida.

A marquesa levou-o pelo braço até a mesa, e o banquete começou, enquanto os companheiros de Don Hernando eram brindados com uma excelente refeição em um apartamento separado.

Quando, no final, foram servidos vinhos requintados, a marquesa perguntou ao hóspede qual era o motivo de sua visita e como eles poderiam agradá-lo.

Don Hernando informou-o das ordens estritas que trouxera do governador de Castela. Então o gesto gracioso e amável da marquesa tornou-se orgulhoso e feroz, e ela exclamou energicamente:

O castelo de Marcilla ficou íntegro até hoje
O castelo de Marcilla ficou íntegro até hoje
— Pode voltar para Castela. Saiba que com terror nada pode ser alcançado dos navarros.

Don Hernando respondeu bruscamente que, pela magnífica recepção que recebera, estava lhe concedendo permissão para recolher todos os objetos preciosos antes de deixar o castelo com seus servos.

“A única coisa que lhe concedo é a vida”, respondeu a marquesa com altivez.

Imediatamente depois, gritando “Às armas!”, o chefe da guarnição entrou na sala à frente de vigorosos guerreiros.

Don Hernando não teve escolha a não ser obedecer às ordens de Dona Ana e saiu do castelo mordendo os lábios e sem dizer uma palavra.

Enquanto isso, seus soldados foram desarmados pelos da marquesa.

Atravessando a ponte, ele viu as ameias encimadas por arcabuzeiros, prontos para atirar. Tudo estava pronto para a defesa.

Villar e seus homens deixaram Marcilla cheios de rancor e sem vontade de empreender novas demolições.

O castelo ainda hoje está intacto, graças à astúcia de Dona Ana, que conseguiu salvá-lo da destruição.


domingo, 16 de fevereiro de 2025

O velho conde que se fez ermitão

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
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política internacional,
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O velho conde Guy de Maience habitava um castelo às margens do Reno, lá adiante, perto da embocadura do rio, não longe do "mar salgado".

Era um infatigável caçador, e tivera em toda sua vida apenas duas belas paixões: a batalha e a caça do bosque.

Ora, um dia em que ele perseguia um veado pela floresta adentro, não foi pequena sua surpresa, e nem sua irritação, ao ver o animal se refugiar no pequeno quintal de uma ermida.

E logo o ermitão caiu a seus pés pedindo clemência pelo animal já sem fôlego:

— "Não, não! Não há clemência" — exclamou o conde.

E lançou no animal o grande dardo que tinha na mão.

Mas a flecha, mal dirigida, atingiu o eremita e lhe atravessou o coração.

Os anjos desceram do céu para recolher sua alma.

Nada pôde exprimir então a dor do assassino involuntário:

"Eu juro tomar o lugar deste que matei — diz ele — e viver nesta ermida até o fim de minha vida!"

E o nobre terminou seus dias como piedoso ermitão.



(Autor: Léon Gautier, "La Chevalerie", PUF Presses Universitaires de France, 1996)


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domingo, 9 de fevereiro de 2025

Aquela que ao Paraíso leva” (Cantigas de Santa Maria 389)

Nossa  Senhora do Bom Auxilio, igreja principal de Castellammare del Golfo
Nossa  Senhora do Bom Auxilio,
igreja principal de Castellammare del Golfo
Luis Dufaur
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Como Santa Maria do Porto curou um filho do Mestre Pedro de Marselha.

Aquela que nos mostra os caminhos para irmos ao Paraíso, tem poder para sarar velhos, jovens e crianças.

Poder tem para sarar o velho, se tal o merece, e outro igual para o mancebo, se ele teve boa juventude, e também o menino, se algum mal lhe acontece quando sofre enfermidades sendo muito pequenino.


Aquela que ao Paraíso ...

E sobre isso a Virgem Santa Maria fez em Sevilha um milagre muito grande, Ela que a rogos de seu Filho ao inferno não nos mande por causa dos nossos pecados, mas que no seu Paraíso queira nos tornar vizinhos.

Aquela que ao Paraíso ...

Esse milagre foi feito na cidade de Sevilha a um menininho que estava muito doente de verdade, filho do Mestre Pedro de Marselha, que fora abade e depois se tornou leigo, e teve dois filhos muitos franzinos.

Aquela que ao Paraíso ...

Dessa mulher ele tinha um filho que mais amava. Era o mais velho, que caiu doente de tão grande doença, que por morto já o julgavam. Ele e a mãe, com muita dor, julgavam-se culpados.

Aquela que ao Paraíso ...

E com a excessiva dor que tinha a mãe, ela encomendou o filho ao Porto de Santa Maria, prometendo que, se vivesse, logo iria em romaria com toda espécie de presentes.

Aquela que ao Paraíso ...

Não houve o que não oferecesse, mas não tinham dinheiro, nem ovelhas, nem carneiros que pudessem para dar, e os seus parentes tampouco queriam lhes dar, e só tinham dois frangos capões.

Aquela que ao Paraíso ...

E com uma promessa como essa, ainda que muito pequenina, aprouve à Virgem, que dos Céus é Rainha, fazer com que o moço pedisse de comer, e foi assim curado, acabando indo brincar com os outros mocinhos.

Aquela que ao Paraíso ...

Quando isto viu Mestre Pedro, à guisa de louvores à Gloriosa mandou assar os dois capões que criava, os fez assar e ofereceu a seu filho comê-los, mandando servir bons vinhos.

Aquela que ao Paraíso ...

 

Interpretado pela Schola Cantorum Basiliensis 
Aquela que ao Paraíso leva” (Cantigas de Santa Maria 389)





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domingo, 26 de janeiro de 2025

O velho conde que se fez ermitão

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
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O velho conde Guy de Maience habitava um castelo às margens do Reno, lá adiante, perto da embocadura do rio, não longe do "mar salgado".

Era um infatigável caçador, e tivera em toda sua vida apenas duas belas paixões: a batalha e a caça do bosque.

Ora, um dia em que ele perseguia um veado pela floresta adentro, não foi pequena sua surpresa, e nem sua irritação, ao ver o animal se refugiar no pequeno quintal de uma ermida.

E logo o ermitão caiu a seus pés pedindo clemência pelo animal já sem fôlego:

— "Não, não! Não há clemência" — exclamou o conde.

E lançou no animal o grande dardo que tinha na mão.

Mas a flecha, mal dirigida, atingiu o eremita e lhe atravessou o coração.

Os anjos desceram do céu para recolher sua alma.

Nada pôde exprimir então a dor do assassino involuntário:

"Eu juro tomar o lugar deste que matei — diz ele — e viver nesta ermida até o fim de minha vida!"

E o nobre terminou seus dias como piedoso ermitão.


(Autor: Léon Gautier, "La Chevalerie")


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