domingo, 31 de agosto de 2025

São Domingos no enterro do comerciante

O sábio Patronio e o conde Lucanor
O sábio Patronio e o conde Lucanor

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs





Certa feita, o Conde Lucanor estava falando de seus assuntos com Patronio seu sapiente conselheiro, e disse:


– Patronio, alguns me aconselham reunir a maior quantidade possível de dinheiro. E dizem que o que mais convém, mais do que tudo.

Rogo-vos vossa opinião sobre esse assunto.

– Senhor conde – respondeu Patronio – é necessário os grandes senhores terem dinheiro em muitas ocasiões. Sobre tudo para nunca deixardes de cumprir vossos deveres por carência de pecúnia.

Mas não por isso podeis pensar só em reunir dinheiro esquecendo todas as obrigações que tendes com vossos vassalos. E as obrigações próprias de vosso estado e dignidade.

Porque se agísseis de outro modo vos poderia acontecer o mesmo que ao lombardo que morava em Bolonha.

O conde não conhecia a história e lhe perguntou sobre o acontecido.

– Senhor conde – contou Patronio – havia na cidade de Bolonha um homem nascido na Lombardia acumulador de grandes riquezas sem olhar de onde provinha. E só procurava acrescentá-las dia após dia.

Até que o lombardo adoeceu muito gravemente. Um de seus amigos, vendo-o tão perto da morte, lhe pediu que se confessasse com São Domingos, que na ocasião estava em Bolonha.

O lombardo aceitou se confessar.

Mas quando chamaram ao Santo, esse viu ser vontade do Senhor que aquele homem ruim sofresse as penas merecidas por suas culpas.

Por isso não foi, mas mandou um frade para confessa-lo.

Quando os filhos do comerciante souberam que São Domingos fora chamado, se contristaram pensando que o bom santo mandaria a seu pai devolver todos os bens mal adquiridos em troca da salvação eterna da alma.

Dessa forma eles ficariam na miséria. Vendo chegar o frade, inventaram que seu pai estava com suores e chamá-lo-iam assim que passasse um pouco melhor.

São Domingos de Gusmão, igreja de Santo Estevão, Salamanca.
São Domingos de Gusmão,
igreja de Santo Estevão, Salamanca.
Logo o pai perdeu a fala e morreu sem poder fazer o mais precioso que havia para a salvação de sua alma.

No dia seguinte enquanto o preparavam para o cemitério, pediram a São Domingos pregar na cerimônia.

Assim fez o santo, mas quando falou do defunto, citou as palavras do Evangelho que dizem: “Ubi est thesaurus tuus, ibi est cor tuum”. Elas significam em língua vulgar: “Onde está teu tesouro, ali está teu coração”.

E após pronunciar isso, voltou-se para os presentes dirigindo estas palavras:

– Irmãos, para que vejais que o Evangelho diz sempre a verdade, procurai no coração deste homem já falecido. Mas vos advirto que não podereis encontra-lo dentro do corpo, mas sim na arca onde guardava seu tesouro.

Começaram a procurar o coração no corpo, mas não o acharam. Mas sim na arca, como tinha garantido o santo.

O coração estava cheio de gusanos e fedia pior que a coisa mais podre e hedionda do mundo.

Agora vós, senhor Conde Lucanor, embora o dinheiro, como vos disse, é bom procurai sempre duas coisas:

– consegui-lo por meios lícitos e honrados,

– e não deseja-lo tanto que vos vejais obrigado a fazer o que não é conveniente ou que vai em prejuízo de vossa honra e de vossos deveres.

Porque antes deveis tentar reunir um tesouro de boas obras para obter clemência diante de Deus e boa fama diante do mundo.

O conde ficou muito comprazido com este conselho de Patronio e agiu de acordo com ele. E lhe foi muito bem.

E tendo percebido o Infante Dom João que o conto era muito bom, mandou inclui-lo neste livro e acrescentou estes versos:

“Amarás sobre tudo o tesouro verdadeiro,

menosprezarás, por isso, o bem perecedouro”.


(Fonte: «El Conde Lucanor», Alicante, Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2004. Conto XIV, págs. 69-71)


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domingo, 17 de agosto de 2025

A Árvore da Mentira

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
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Um dia, o Conde Lucanor conversava com Patrônio, seu conselheiro, e disse:

“Patrônio, saiba que estou muito triste e em constante luta com alguns homens que não me estimam e são tão enganadores e mentirosos que mentem sempre, tanto para mim quanto para aqueles com quem lidam.

“Contam mentiras tão parecidas com a verdade que, embora sejam muito benéficas para eles, me causam grande dano, pois graças a elas aumentam seu poder e incitam as pessoas contra mim.

“Considere que, se eu quisesse agir como eles, saberia fazê-lo tão bem quanto; mas, como a mentira é um mal, nunca a usei.

“Para o bem do seu bom entendimento, imploro que me aconselhe sobre como agir com esses homens.”

“Senhor Conde Lucanor”, disse Patrônio, “para que possa fazer o que é melhor e mais benéfico, gostaria muito de lhe contar o que aconteceu com a Verdade e a Mentira.”

O conde pediu que ele o fizesse.

“Conde Lucanor”, disse Patrônio, “Verdade e Mentira viviam juntas, e depois de um certo tempo, Mentira, que é muito inquieta, propôs a Verdade que plantassem uma árvore para que ela desse frutos e pudessem desfrutar de sua sombra nos dias mais quentes.

“Verdade, que não é falsa e se contenta com pouco, aceitou a proposta.

“Quando a árvore foi plantada e começou a crescer frondosa, Mentira propôs a Verdade que a dividissem entre as duas, o que agradou a Verdade.

“Mentira, deixou claro com um raciocínio muito bonito e bem construído que a raiz sustenta a árvore, lhe dá vida e, portanto, é a parte melhor e mais proveitosa.

“Então, aconselhou Verdade a manter as raízes, que vivem no subsolo, enquanto ela se contentaria com os galhos que ainda não haviam emergido e viviam acima do solo.

“Acrescentou que seria grande perigo que os galhos ficassem a mercê dos humanos, que poderiam cortá-los ou pisoteá-los, assim como os animais e os pássaros.

Ela também lhe disse que o calor intenso poderia secá-las, e o frio intenso poderia queimá-las.

“Pelo contrário, as raízes não seriam expostas a esses perigos”.

Quando a Verdade ouviu todas essas razões, sendo bastante crédula, muito confiante e sem qualquer malícia, deixou-se convencer pela Mentira, acreditando que o que ela dizia era verdade.

Como pensava que a Mentira a aconselhava a ficar com a melhor parte, a Verdade ficou com a raiz e ficou muito contente com a sua parte.

A mentira falsifica a verdade das Escrituras, Andrea di Bonaiuto, Basilica de Santa Maria Novella, Florença
A mentira falsifica a verdade das Escrituras, Andrea di Bonaiuto,
Basílica de Santa Maria Novella, Florença
Quando a Mentira terminou a distribuição, ficou muito feliz por ter enganado a Verdade, graças à sua habilidade em mentir.

A Verdade foi viver no subsolo, pois era lá que estavam as raízes que ela havia escolhido, e a Mentira permaneceu acima do solo, com humanos e outros seres vivos.

E como a Mentira é muito bajuladora, logo conquistou a admiração do povo, pois sua árvore começou a crescer e a produzir grandes galhos e folhas que proporcionavam sombra fresca.

Flores muito bonitas também cresceram na árvore, de muitas cores e agradáveis aos olhos.

Quando as pessoas viram uma árvore tão bonita, começaram a se reunir ao redor dela com muita alegria, apreciando sua sombra e suas flores, que eram de cores belíssimas.

A maioria das pessoas ficava lá, e mesmo aqueles que moravam longe recomendavam a árvore de uns aos outros por sua alegria, paz e sombra fresca.

Quando estavam todos juntos sob aquela árvore, como a Mentira que é muito bajuladora, lhes proporcionava muitos prazeres e lhes ensinava sua ciência, que aprenderam com grande prazer.

Dessa forma, conquistou a confiança de quase todos: a alguns, ensinava mentiras simples; a outros, mais sutis, mentiras duplas; e aos mais sábios, mentiras triplas.

“Meritíssimo conde, saiba que é uma mentira simples quando alguém diz a outro: 'Senhor Fulano de Tal, farei tal e tal coisa por você', sabendo que é falsa.

“Uma mentira dupla é quando uma pessoa faz promessas e juramentos solenes, dá garantias, autoriza outros a negociar por ela e, ao dar tais garantias, planeja maneiras de cometer seu engano.

“Mas a mentira tripla, muito prejudicial, é a de quem mente e engana dizendo a verdade.

“A Mentira sabia disso tão bem, e ensinava tão bem àqueles que queriam se refugiar à sombra de sua árvore, que os homens sempre acabaram enganando e mentindo, e não conseguiam encontrar ninguém que não soubesse mentir e que não acabasse sendo iniciado nessa falsa ciência.

Em parte pela beleza da árvore e em parte também pela grande sabedoria que a Mentira lhes ensinava, as pessoas desejavam muito viver sob aquela sombra e aprender o que a Mentira podia lhes ensinar.

A Verdade, Andrea di Bonaiuto, Basílica de Santa Maria Novella, Florença
A Verdade, Andrea di Bonaiuto, 
Basílica de Santa Maria Novella, Florença
“Assim, a Mentira se sentia muito honrada e era muito respeitada pelas pessoas, que sempre buscavam sua companhia: quem menos se aproximasse dela e menos conhecesse suas artes era desprezado por todos, e até a própria Mentira era tida em baixa estima.

“Enquanto isso acontecia e a Mentira se sentia muito feliz, a triste e desprezada Verdade estava escondida no subsolo, sem que ninguém soubesse dela ou quisesse procurá-la.

“Vendo a Verdade que não tinha nada para comer além das raízes da árvore que a Mentira a aconselhara a tomar como sua, e sem qualquer outro alimento, ela começou a roer e cortar as raízes da árvore de Mentira para se sustentar.

“Embora a árvore tivesse galhos grossos, folhas muito largas que forneciam bastante sombra e flores de cores vibrantes, antes que pudesse dar frutos, todas as suas raízes foram cortadas, pois a Verdade teve que comê-las.

“Quando as raízes desapareceram, a Mentira estava à sombra da árvore com todas as pessoas que estavam aprendendo seus truques, um vento se levantou e sacudiu a árvore.

“Como não tinha raízes, caiu facilmente sobre a Mentira, ferindo e quebrando muitos de seus ossos, bem como os de seus companheiros, que foram mortos ou gravemente feridos. Todos, portanto, saíram muito mal.

“Então, através do vazio deixado pelo tronco, a Verdade, que havia sido escondida, emergiu, e quando alcançou à superfície, viu que a Mentira e todos os que o acompanhavam estavam muito maltratados e haviam sofrido grandes danos por terem seguido seu caminho.

“Você, Conde Lucanor, observe que a Mentira tem galhos muito grandes, e suas flores, que são suas palavras, pensamentos ou lisonjas, são muito agradáveis e agradam muito às pessoas, mesmo que sejam efêmeras e nunca deem bons frutos.

“Portanto, mesmo que seus inimigos usem a lisonja e o engano da mentira, evite-os o máximo que puder, nunca imitando seus maus caminhos e sem invejar a fortuna que alcançaram com a mentira, pois certamente durará pouco tempo e eles não alcançarão bons resultados.

“Assim, quando se sentirem mais confiantes, lhes acontecerá como a árvore da Mentira e aqueles que se abrigaram sob ela.

“Embora a Verdade seja frequentemente desprezada em nossos tempos, abrace-a e tenha-a em alta estima, pois por meio dela você será feliz, terminará bem e ganhará o perdão e a graça de Deus, que lhe darão prosperidade neste mundo, o tornarão muito honrado e lhe concederão a salvação para o próximo”.

O Conde ficou muito satisfeito com este conselho que Patrônio lhe deu; ele seguiu seus ensinamentos e agiu bem.

E vendo que essa história era muito boa, ele a colocou neste livro e compôs alguns versos que dizem assim:



Evitai a mentira e abraçai a verdade,

pois o mal vem sobre aqueles que vivem no mal.





El conde Lucanor
El conde Lucanor é um livro narrativo da literatura de Castela medieval, escrito entre 1330 e 1335 pelo infante Don Juan Manuel, Príncipe de Villena.
O título completo e original em castelhano medieval é Libro de los enxiemplos del Conde Lucanor et de Patronio (Livro dos exemplos do conde Lucanor e de Patronio).
O livro compõe-se de cinco partes, sendo a série de 51 exempla ou contos moralizantes a mais conhecida.


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domingo, 3 de agosto de 2025

A Primeira Comunhão do cruzado

Luis Dufaur
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No campo de Aliscans, o exército cristão, comandado por Guilherme d’Orange – Guilherme do Nariz Curvo – tinha sido derrotado pelos sarracenos.

Podiam-se contar apenas quatorze sobreviventes.

Próximo a uma fonte, em um prado, jazia um jovem, quase menino.

Apesar disto era um guerreiro que nunca havia recuado.

Tratava-se de Vivien, sobrinho de Guilherme, a quem ele amava como a um filho.

Percorrendo o campo de batalha ele reconhece Vivien e o crê morto, mas este faz um leve movimento.

Docemente o nobre duque se inclina e lhe murmura ao ouvido:

“Tu não gostarias de comungar Nosso Senhor Eucarístico?”, e Guilherme lhe mostrou uma Hóstia consagrada.

“Porém – continuou – é preciso que faças tua confissão”.

– “Eu quero muito, responde uma voz fraca, mas apressai-vos; eu vou morrer.

“Tenho fome deste pão, eis minha confissão.

“Não me recordo de uma só falta a não ser esta: eu tinha feito o voto de jamais recuar um passo diante dos pagãos, e tenho muito medo de haver hoje faltado com a promessa feita ao bom Deus”.

Guilherme do Nariz Curvo tira a Hóstia de uma teca que trazia ao peito e a aproxima dos lábios entre-abertos de Vivien, cujos olhos se iluminam.

A morte lhe desceu ao coração, quando acabou de fazer sua primeira comunhão.


(Autor: Funck Brentano, "Féodalité et Chevalerie", Les éditions de Paris, Paris, 1946)


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