domingo, 17 de novembro de 2024

O vilão que conquistou o Paraíso

Queda dos anjos rebeldes. Pieter Bruegel o Velho (1525-1569), Royal Museums of Fine Arts, Bruxelas
Queda dos anjos rebeldes. Pieter Bruegel o Velho (1525-1569),
Royal Museums of Fine Arts, Bruxelas
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs






Um vilão morreu, e com ele aconteceu o que nunca havia acontecido antes e seguramente jamais voltará a acontecer: ninguém ficou sabendo da sua morte, nem no Céu nem no inferno.

Como pôde acontecer isso, não sei.

Sei com segurança é que, no momento em que a alma dele se separou do corpo, não havia por ali nem anjos nem diabos para recolhê-la, e com isso o pobre homem ficou sem guia.

E também não havia ninguém com atenção posta nele, para proibi-lo de fazer o que bem entendesse com a sua alma, de modo que resolveu por sua própria conta e risco tomar o caminho do paraíso.

São Miguel Arcanjo,  Jacopo Torriti  (1267-1292) Grenoble, Musée des Beaux Arts
São Miguel Arcanjo,
Jacopo Torriti  (1267-1292)
Grenoble, Musée des Beaux Arts
Não conhecia o caminho, mas viu de longe o arcanjo São Miguel conduzindo uma alma, e o seguiu despistadamente, como quem não quer nada.

Chegou à porta do Céu junto com São Miguel. São Pedro, ouvindo que o chamavam, abriu a porta e deixou que entrassem o anjo e seu convidado.

Quando viu do lado de fora o vilão sozinho, repreendeu-o:

— Aqui não se entra sem acompanhante, e além disso não queremos saber de vilões. Portanto, suma-se!

— Como ousais chamar-me de vilão? Vilão sois vós, e grandíssimo vilão. Depois de negar três vezes a Nosso Senhor, ainda vos acreditais com direito de impedir a entrada de um cidadão honrado num lugar onde nem deveríeis estar?

Isso é conduta para um apóstolo? Como é que Deus foi consentir em entregar a guarda do paraíso a quem age dessa maneira!

São Pedro não estava acostumado a ouvir sermões como esse, e ficou tão desnorteado que correu para dentro, sem nada responder.

Encontrou São Tomé e lhe contou a vergonha que acabara de passar.

— Deixe isso comigo — respondeu São Tomé. — Vou ver esse mendigo, e logo o despacharei.

Aproximou-se da porta e falou duramente ao vilão:

— Como ousas apresentar-te no lugar dos escolhidos, onde jamais entrou quem não fosse mártir ou confessor?

— Ah! É o senhor que vem me dizer isso? E o que está o senhor fazendo aí dentro?

Um homem sem fé, que não acreditou na Ressurreição do Senhor, duvidando da palavra de pessoas dignas de crédito.

E ainda precisou tocar nas chagas do Ressuscitado, para poder acreditar. Se gente tão descrente como o senhor entra aqui, por que não posso entrar eu, que sempre tive fé?

São Tomé baixou a cabeça, envergonhado, e voltou aonde estava São Pedro. São Paulo, que passava por ali, ouviu as lamentações dos dois apóstolos e se aproximou.

Fizeram-lhe um relato do acontecido, e então ele disse aos dois apóstolos desapontados:

— É que não sabeis fazer as coisas direito. Vou já acertar o passo desse vilão.

São Paulo, igreja de Santa Cecília, SP
São Paulo, igreja de Santa Cecília, SP
Foi até a porta com passo decidido, pegou o vilão pelo braço e quis forçá-lo a sair aos empurrões.

O vilão resistiu e lançou em rosto de São Paulo:

— Não me estranha nem um pouco essa brutalidade num homem como o senhor, perseguidor de cristãos que nunca escondeu sua tirania.

Para convertê-lo, foi necessário que Deus demonstrasse tudo o que sabe fazer, em matéria de milagres, e ainda assim o senhor foi um revoltoso, discutindo com um superior que era São Pedro.

Mesmo não sendo eu Santo Estêvão nem nenhum dos bons cristãos que o senhor torturou, deixe estar, que eu o conheço muito bem.

Apesar da segurança que São Paulo havia inicialmente demonstrado, desconcertou-se tanto quanto os outros.

Achou melhor juntar-se a eles, e combinaram de ir queixar-se a Deus.

Como chefe dos apóstolos, São Pedro tomou a palavra diante de Nosso Senhor, para pedir justiça.

Terminou dizendo que a insolência do vilão o deixara tão envergonhado, que não se atrevia a voltar ao seu posto enquanto o insolente se encontrasse ali.

— Eu mesmo irei falar com esse homem — disse Nosso Senhor.

Ao chegar diante da porta, Nosso Senhor perguntou ao vilão:

— Por que o senhor compareceu sem a companhia de um anjo? Aqui só se entra acompanhado, e além disso o senhor não tem o direito de insultar os meus apóstolos.

— Senhor, vossos apóstolos quiseram afastar-me, e eu acho que tenho tanto direito de entrar quanto eles, pois não vos reneguei, não duvidei da vossa Ressurreição nem apedrejei ninguém. Sei que ninguém é recebido aqui sem passar por um julgamento, e por isso quero me submeter ao vosso.

Juízo Final, catedral de Conques, França
Juízo Final, catedral de Conques, França
“Vós me fizestes nascer na pobreza, suportei minhas penas sem queixar-me e trabalhei toda a minha vida.

“Ensinaram-me a crer em vosso Evangelho, e eu acreditei. Fiz tudo o que me disseram que devia fazer.

“Dei esmolas aos que eram mais pobres do que eu e reparti o meu pão com eles.

“Confessei-me e comunguei quando o vigário mandou, e ele me disse que quem vive assim ganha o Céu.

“Por fim me fizestes entrar para ser interrogado, e aqui vou ficar, pois vós mesmo elogiastes no Evangelho uma que “escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada”, e não podeis voltar vossa palavra atrás.

— Muito bem, podes ficar! Sem dúvida ganhaste o Céu pelos teus discursos, que enunciaste de modo convincente. Esta é a vantagem de ter frequentado boa escola.

(Fonte: Jakes de Basin, in R. Menéndez Pidal, Antología de cuentos – Labor, Barcelona, 1953)


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domingo, 3 de novembro de 2024

A lenda de Santo Elígio

Deus Pai e Deus Filho, Sevilha, Espanha
Deus Pai e Deus Filho, Sevilha, Espanha
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs






Um dia estava o Senhor Deus todo pensativo no Céu. Tanto que Jesus lhe perguntou:
— Que é que tendes, meu Pai?
Respondeu o Senhor:
— Olha lá no fundo.
— Onde?
— Lá em baixo: Vês naquela vila, numa das últimas casas, aquela grande e bela oficina de ferrador?
— Vejo.
— Pois bem. Lá está uma criatura que eu quisera salvar. Chama-se Elígio. É sem dúvida um homem bom, obediente às minhas leis, caridoso com os pobres, pronto para servir a todos. Da manhã até à meia-noite ele está sempre aplicado ao trabalho, sem que jamais escape de sua boca uma blasfêmia ou uma palavra suja. Parece-me mesmo digno de tornar-se um grande santo.
Jesus perguntou:
— E que é que lho impede?
— O seu orgulho. É um artífice de primeiríssima ordem, mas está convencido de que não há no mundo quem seja capaz de superá-lo. E tu sabes que presunção significa perdição.
— Meu Pai, se consentis que eu desça à terra, tentarei a conversão dele.
— Pois vai, meu filho.

E Jesus desceu à terra. Vestiu um macacão de aprendiz de ferreiro, pôs nos ombros uma trouxa de ferramentas, e sem mais o divino operário pôs-se a caminho da oficina do Mestre Elígio. À entrada lia-se: "Ferrador Elígio, mestre dos mestres. Quase sem fogo bate qualquer ferradura".

O pequeno aprendiz chegou até à porta, e descobrindo a cabeça, exclamou:
— Bom dia, mestre! Bom dia a todos. Se precisam de um pouco de auxílio, estou pronto.
— Por enquanto, não — respondeu Elígio.
— Então adeus, mestre. Ficará para outra vez.

São Martim de Tours, Museu de Cluny, Paris
São Martim de Tours, Museu de Cluny, Paris
E Jesus continuou o seu caminho. Logo adiante topou com um magote de gente, e disse:
— Não pensei que numa oficina, onde deveria haver muito trabalho, recusassem meu serviço.
— Escuta, rapaz — disse um do grupo: — ao chegar, como foi que saudaste ao Mestre Elígio?
— Como saúdam todos: Bom dia, mestre, e a toda a companhia.
— Não, não era esse o modo de saudar. Precisava chamá-lo mestre dos mestres. Não viste o que está escrito sobre a porta?
— É verdade — disse Jesus. — Vou tentar novamente.

Voltou à oficina e disse:
— Senhor mestre dos mestres, o Sr. não precisaria de um ajudante?
— Entre. Trabalho haverá para ti também. Mas lembra-te bem do que te digo uma vez por todas: Quando me saudares, deves chamar-me mestre dos mestres. Não é por orgulhar-me, mas homens como eu, que com duas escaldaduras batem qualquer ferradura, em toda esta terra não se encontram.
— Na minha terra bate-se com uma escaldadura apenas.
— Com uma só? Ah! meu rapaz, não venhas contar-me lorotas.
— Pois bem, eu vos mostrarei se digo ou não a verdade, Sr. mestre de todos os mestres.
E Jesus tomou um pedaço de ferro, atirou-o ao fogo, soprou e atiçou as brasas. Quando o ferro estava em brasa, dispôs-se a pegá-lo com a mão.
— Pobre tonto! — gritou-lhe um dos presentes — tu queres te queimar?
— Não tenhais medo — replicou Jesus. — Graças a Deus, em nosso país não precisamos de tenazes.
Tomou com uma das mãos o ferro em brasa, colocou-o sobre a bigorna, e com o seu martelo bateu-o, deixando-o tão perfeito como ninguém fizera até então.

Mestre Elígio disse:
— Basta que eu queira, e sou capaz de fazer o mesmo.
E de fato tomou uma pedaço de ferro, lançou-o na forja, soprou e atiçou o fogo. Quando o ferro estava bem vermelho, quis pegá-lo para levá-lo à bigorna, mas queimaram-se-lhe os dedos. Quis fazê-lo depressa e resistir à dor, mas foi obrigado a largar o ferro e recorrer às tenazes. Entretanto, o ferro esfriou. O pobre Mestre Elígio fez força, bateu, suou, mas não conseguiu fazer o que fizera o rapaz.

— Escutem — diz o rapaz — parece-me que ouço o andar de cavalo.
Mestre Elígio correu à porta e viu um cavaleiro, que parou diante da oficina. Ora, convém saber que aquele cavaleiro era São Martinho. Ele cumprimentou e disse:
— Venho de muito longe, e o meu ginete perdeu um par de ferraduras. Preciso encontrar um ferrador.

São Elígio, santo bispo
São Elígio, santo bispo
Mestre Elígio, todo orgulhoso, assim lhe falou:
— Melhor do que aqui não encontrareis, senhor cavaleiro. Estais diante do melhor ferrador daqui e de toda a França. Pode-se dizer com verdade que ele é o mestre dos mestres. Rapaz, segura um pouco a pata do cavalo.
— Segurar a pata do cavalo? — observou Jesus. — Em nossa terra isso não é necessário.
— Esta agora é boa! — gritou mestre Elígio. — Como fazeis para ferrar um cavalo sem segurar a pata?

O rapaz tomou o puxavante, aproximou-se do cavalo, e com um golpe lhe cortou o casco, levou-o à oficina e apertou-o no torno. Depois limou o casco, aplicou-lhe a ferradura nova que acabara de bater, e com o martelo meteu-lhe os cravos. Em seguida desapertou o torno, levou o casco ao cavalo e adaptou-o bem. Fazendo um sinal da cruz, disse:
— Meu Deus, fazei que o sangue estanque.
E a pata do cavalo estava pronta, ferrada e segura, como jamais se vira igual. Enquanto o primeiro aprendiz arregalava os olhos, Mestre Elígio exclamou:
— Caramba! O mesmo hei de fazer eu também.

E pôs mãos à obra. Armado do puxavante, correu ao animal e cortou-lhe o pé. Levou-o para dentro, apertou-o no torno e meteu-lhe os cravos, tudo como fizera o rapaz. Depois — e aqui está o busílis — devendo colocar o pé no lugar, aproximou-se do animal e ajustou-o à perna do melhor modo que pôde. Mas... o sangue escorria, e o pé caiu no chão.

Agora a alma soberba de Mestre Elígio se achava confundida. Entrou na oficina, para ajoelhar-se aos pés do jovem, mas este desaparecera, como desapareceram o cavalo e o cavaleiro. O pranto inundou o coração do Mestre Elígio.

Reconhecera que acima dele, pobre mortal, havia outro Mestre que era inimitável. Tirou o avental de couro, abandonou a oficina e pôs-se a percorrer o mundo, anunciando a palavra de Nosso Senhor Jesus Cristo.


(Fonte: Pe. Francisco Alves, C.SS.R., "Tesouro de Exemplos" - Vozes, Petrópolis, 1960)



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