domingo, 5 de agosto de 2018

O jogral no inferno


Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs






Em Sens, na França, havia um jogral incapaz de fazer mal a uma criança, mas que levava a vida mais desordenada que se possa imaginar.

Passava as horas e os dias na taberna, nas praças ou em lugares piores.

Ganhava algum dinheiro cantando e tocando seu instrumento, mas logo corria à procura de quem estivesse disposto a jogar, e perdia até a camisa do corpo.

Quando não tinha dinheiro, empenhava até sua viola para obtê-lo, e esse também se evaporava, porque de fato a sorte nunca o ajudava.

Por isso sempre vestia roupas maltrapilhas, andava descalço e sem dinheiro. Mas estava sempre contente, sorria sempre e cantava sem cessar.

Só pedia a Deus que convertesse todos os dias da semana em Domingo.

Acabou morrendo. Um diabo novinho, que ainda não fizera sua estreia no serviço de levar almas para seu patrão, e que durante o mês anterior percorrera vilas e campo à procura de oportunidade para cumprir suas incumbências, coincidiu de passar por ali no momento em que o jogral expirava, e se apoderou da sua alma. Colocou-a nos ombros e se mandou para o inferno.

Chegou na hora da chamada. Lúcifer estava no seu trono.

À medida que chegavam, os demônios depositavam aos pés do patrão a caça que haviam conseguido durante o dia. Um trazia um ladrão, outro trazia um guerreiro morto em combate, outros traziam bispos, monges, camponeses, burgueses, etc.



O negro monarca examinava as vítimas, e depois fazia um sinal para que fossem lançadas na caldeira. Terminada essa tarefa, e antes de mandar que fechassem as portas, perguntou:

— Já voltaram todos?

— Sim — respondeu uma espécie de porta-voz, — só falta aquele novato simples e tolo, que saiu há um mês. Acho que não devemos esperá-lo, pois deve estar envergonhado como nos outros dias, por não ter caçado ninguém, e não vai querer entrar.

Mal havia terminado de falar, o diabinho novo apareceu carregando o jogral, e o apresentou humildemente a Lúcifer. Este ordenou:
— Aproxima-te! Que tipo de gente trazes?

O demônio tolo passou a palavra ao jogral, que esclareceu:

— Senhor, exerço a arte de alegrar as pessoas, e podeis ver em mim toda a ciência disponível na Terra. Apesar disso passei lá em cima muita fome e muito frio, e se quereis encarregar-vos de hospedar-me, poderei cantar para entreter-vos, se é que gostais de música.

— Maldita seja! Não precisamos aqui de nenhuma música. Estás vendo essa caldeira? Vou te encarregar de atiçar bem o fogo e não deixar que se apague. Vai ser esta a tua incumbência aqui. Música! Onde já se viu?! Começa logo a trazer lenha, senão verás o que te acontece se deixar o fogo apagar-se.

O jogral fez uma reverência e começou a jogar lenha no fogo. Durante algum tempo cumpriu bem sua tarefa. Mas um dia Lúcifer convocou todos os demônios para irem à Terra dar uma batida geral. Chamou o jogral e lhe disse:

— Vou viajar, e te deixo encarregado de guardar todos os meus prisioneiros. Mas pagarás com os olhos da cara se estiver faltando um sequer, quando eu voltar.
— Senhor, podeis viajar tranquilo, pois encontrareis tudo em ordem quando voltardes.

O rei do inferno saiu, e com ele toda a manada de diabos, demônios e diabinhos. São Pedro estava aguardando exatamente essa oportunidade, escondido atrás de um muro. Quando saiu o último diabo, pôs um disfarce com barba preta e bigodes bem torcidos, entrou e aproximou-se do jogral.

— Amigo, vamos disputar uma partida? — disse, enquanto sacudia numa das mãos um saquinho com dados, objetos muito conhecidos do jogral, e na outra uma bolsa cheia de moedas.

Ouvindo o ruído dos dados e o tentador tinir das moedas, renasceu no jogral seu velho amor pelo jogo. Mas lembrou-se da ameaça do novo patrão, e respondeu:

— Não posso jogar, porque estou completamente desprovido de dinheiro.
— Não seja por isso, amigo! Se lhe falta dinheiro, podemos disputar almas.
— Almas! Mas eu fui bem advertido do que me acontecerá, se faltar uma única alma quando meu patrão voltar.
— Já se vê que você é mesmo muito tolo! Quem é que vai dar pela falta de umas cinco ou seis almas, no meio de tantos milhares? Veja bem quantas moedas eu tenho neste saco, e aproveite a oportunidade, senão vou-me embora procurar alguém mais esperto.

O jogral olhou cobiçosamente para as moedas e pegou os dados com interesse, enquanto vacilava entre a oportunidade de ganhar uns trocados e o risco da punição certa.

Por fim, não pôde resistir mais, e consentiu em jogar umas tantas partidas, mas disputando uma alma de cada vez, para não se expor a prejuízo muito grande.

São Pedro tirou uma moeda do saquinho e o jogral tirou uma alma da caldeira. Jogaram os dados e o jogral perdeu, para não violar o costume.

Isso se repetiu várias vezes, e a cada nova partida o jogral dobrava a aposta, para recuperar o terreno perdido. Perdia de novo, perdia sempre, e achou melhor triplicar as apostas.

Não concordava que pudesse ter tão má sorte, e desconfiou que o seu opositor estivesse roubando no jogo. São Pedro protestou, o jogral respondeu com insultos, e acabaram nas vias de fato.

São Pedro foi mais forte, e o jogral acabou obrigado a pedir perdão. Propôs reiniciarem o jogo, com a condição de anular a última partida.

São Pedro concordou e voltaram a disputar, mas o jogral perdia sempre. Logo estava apostando as almas às centenas, aos milhares, aos milhões.

São Pedro se aproximou da caldeira e começou a retirar as almas que havia ganho. Então o jogral resolveu jogar de uma só vez todas as almas.

Jogaram, enquanto as pobres almas esperavam angustiadas, mas o resultado não pode ser novidade para nós, que conhecemos a má sorte do jogral.

São Pedro partiu para o Céu, levando consigo todas as almas. Pouco depois voltou Lúcifer com suas legiões. Quase caiu de espanto quando viu todas as fogueiras apagadas e as caldeiras vazias. Só havia uma alma, que era a do jogral.
— Maldito! Que fizeste com as almas que te confiei?

Chorando, o jogral se lançou ao chão e contou o sucedido, enquanto lamentava sua má sorte tanto no inferno como na Terra. Lúcifer compreendeu que não lhe era conveniente ter um jogral no inferno, pois algum dia acabaria perdendo todos os demônios, e até mesmo a si próprio.

Deu um grito, que reboou por todo o inferno, e perguntou:
— Quem foi o idiota que trouxe este jogral?

Apresentou-se o diabinho. Recebeu uma surra tão grande, que jurou nunca mais trazer jogral nenhum para o inferno. Depois disso, por ordem de Lúcifer, pegou nas costas o jogral e o lançou para fora do inferno.

O jogral saiu correndo, e ainda conseguiu alcançar São Pedro com as almas quando entravam no Céu.


(Jakes de Basin, in R. Menéndez Pidal, "Antología de cuentos" - Labor, Barcelona, 1953)


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