domingo, 30 de junho de 2024

Por que Deus quis ser Filho da Virgem

Igreja de Fuentidueña, Segovia, Espanha.
Igreja de Fuentidueña, Segovia, Espanha.
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs




Cantiga 38 do rei de Castela Alfonso X, o Sábio. Cantigas de Santa María

Esta cantiga conta como a imagem de Santa Maria estendeu o braço e segurou seu Filho, que ia cair devido à pedrada que Lhe jogou um saltimbanco.




Posto que Deus quisesse ser Filho da Virgem, para nos salvar a nós pecadores, por isso eu não me maravilho que Lhe doa ver quem O faz sofrer.

Porque Ela e seu Filho se acham unidos pelo amor, de maneira que nunca ninguém por nada poderá separá-los.

Portanto, dão prova de serem muito néscios aqueles que vão contra Ela, acreditando que Ele não se sente concernido.

Isso fazem os malvados, que não querem compreender esse amor, e que a Mãe e o Filho estão de acordo em fazer o bem e castigar o mal.

Foi por isso que, há já muito tempo, aconteceu de o conde de Poitiers querer entabular batalha contra o rei da França.

Para isso reuniu suas tropas em Chateauroux, num mosteiro de monges enclaustrados, que o conde mandou dispersar porque suspeitava que fossem entrega-lo aos franceses.

Enquanto os monges estavam sendo expulsos, pessoas muito más foram se meter no mosteiro: vagabundos, jogadores de dados, e outros, que levavam vinho para vender.

E entre esses desventurados havia um que, quando começava a perder, injuriava os santos e a Rainha sem igual.

Mas uma mulher, que havia entrado na igreja por causa de seus pecados, foi até a sacristia onde os monges costumavam revestir-se dos sagrados ornamentos quando iam dizer as missas.

Ali estavam bem entalhados na pedra Deus e sua Mãe, logo se ajoelhou diante deles e começou a se culpar de seus pecados.

Virgem das Cruzadas, Puy-de-Dome, França.
Virgem das Cruzadas, Puy-de-Dome, França.
Quando o saltimbanco a viu, voltou-se com olhar irado e começou a maltratá-la, dizendo:

– “Velha, estão muito enganados os que querem acreditar nas imagens de pedra; e para que vejas quão enganados estão, eu vou espancar esses ídolos pintados.”

E logo foi lhes jogar uma pedra, que acertou no Filho, que tinha os dois braças alçados em atitude de bênção.
E embora não tenha quebrado os dois, um logo caiu. Mas a Mãe pôs sobre ele os braços para levantá-lo, deixando cair a flor que tinha entre os dedos.

Maiores milagres ainda Deus mostrou ali, porque fez correr sangue brilhante da ferida do Menino Jesus sobre os panos dourados que vestiam a Mãe, que ficou com o busto nu.

Embora Ela não gritasse, começou a chorar e voltou os olhos tão irados, que todos os que podiam vê-la ficaram tão espantados que nem ousavam olhá-la.

E os demônios se reuniram logo contra aquele que tinha feito essa coisa, e porque eram homicidas bem pagos foram logo por cima dele e o mataram.

Outros dois saltimbancos endemoninhados que estavam ali tentaram esconder o corpo do facínora morto.

Sem embargo, os endiabrados com grande raiva começaram a ser todos consumidos e se afogaram no rio, porque o demônio não lhes deu trégua, para que fossem escarmentados todos quantos disto ouvissem falar.

Quando o conde soube o que tinha acontecido, acompanhado de cavaleiros armados foi se apear diante da igreja, e um desses cavaleiros mais atrevidos falou assim:

“Isto me faz doer o coração; ide procurar a pedra e trazei-ma, para ver se Ela quererá me sarar da pedra que entrou, rachando meu queixo, e por cujo conserto tive que pagar muitos dinheiros em vão”.

Quando isso falou, pôs sob a imagem suas pernas, lados e cabeça, e logo seus ossos ficaram bem soldados e ele expeliu uma pedra pela boca.

Vendo isso todos ficaram maravilhados, e ele colocou a pedra diante da imagem sobre o altar, sendo testemunhado por homens honrados.





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domingo, 16 de junho de 2024

São Bernardo fez o demônio servir de roda

São Bernardo de Claraval. Heiligenkreuz, Áustria
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
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São Bernardo voltou certa vez à sua aldeia natal – Fontaine, perto de Dijon – para encontrar junto à lagoa de sua infância toda a calma e toda a força de que necessitava.

Com efeito, através de sua eloquência e da força de convicção de sua fé, ele deveria arrastar para a segunda Cruzada tudo quanto na Europa havia de melhor na nobreza e nas classes populares de boa vontade.

Por isso ele precisava de um momento de contemplação e repouso em sua terra natal.

Tanto mais quanto havia tempo que inquietações e dúvidas o assaltavam e atormentavam, dando a impressão de que uma diabólica mão pesava-lhe sobre as costas, queimando-a.

Uma voz lhe murmurava palavras desencorajadoras e anunciava que seu projeto iria fracassar.

Imagens ora tentadoras, ora aterrorizantes desfilavam diante de seus olhos.

São Bernardo lutava contra o demônio com todo o poder da oração, sendo nisso ajudado pela tranquilizadora paisagem de seus jovens anos.

A serenidade voltou e ele decidiu se reunir com o já numeroso magote de companheiros de fé e de combate, com os quis pegou a estrada de Vézélay.

Os caminhos naqueles tempos eram ruins e difíceis, as viagens lentas e penosas, o perigo acompanhando os viajantes como se fosse parte de sua própria bagagem.

O demônio queria impedir a pregação da Cruzada
Entretanto, incidente algum de importância perturbou o avanço do comboio que se aproximava do ponto de chegada.

Ora, uma tempestade de uma violência extraordinária pegou-os uma noite num vale muito estreito.

Um ruído infernal descia como que rolando de pedra em pedra, torrentes de lama ameaçavam a todo o momento levar as carruagens, os bois e os cavalos.

Os viajantes encontraram refúgio numa gruta onde acabaram cedendo ao sono.

São Bernardo ficou só sob a tempestade a fim de tranquilizar os animais.

O santo tentou desentalar uma das charretes que estava atolada na lama, mas enquanto o fazia uma de suas rodas quebrou completamente.

Um riso estridente se fez ouvir nas suas orelhas e ele percebeu nas costas o sopro ardente que ele conhecia bem.

O diabo não abandonava sua presa e naquela noite mostrava-se mais empedernido.

E o diabo mordeu o rabo e foi fazendo o trabalho
da roda quebrada
São Bernardo fez então lentamente o Sinal da Cruz e com voz forte deu ordem ao demônio para ocupar o lugar da roda quebrada.

Uivando de dor e de raiva, o espírito mau não pôde resistir à vontade daquele que agora era seu senhor.

Mordendo a própria cauda, ele assumiu a forma circular e tirou com suas forças a charrete entalada.

O amanhecer despontou calmo e luminoso sobre o comboio já disposto em ordem e todos retomaram a estrada.

Apenas um gemido melancólico proveniente de uma roda ritmava a marcha: esta foi a única lembrança dos furores da noite.

No dia seguinte, São Bernardo atingiu o alto da colina de Vézélay e ali pregou a Cruzada com o brilho que a História registrou.




(Fonte: Sophie e Béatrix Leroy d’Harbonville, “Au rendez-vous de la Légende Bourguignonne”, ed. S.A.E.P., Ingersheim 68000, Colmar, França, págs. 59-60)


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domingo, 2 de junho de 2024

Como o camponês aprendeu o padre-nosso


Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
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Era uma vez um camponês que tinha um coração duro, e não era esmoler.

Foi-se confessar certo dia, e o confessor deu-lhe por penitência rezar sete vezes o Padre-Nosso.

— Não o sei, e nunca o pude aprender — respondeu o aldeão.
— Pois neste caso imponho-te por penitência emprestar um alqueire de trigo a todas as pessoas que te forem pedir, de minha parte.

No dia seguinte de manhã apresentou-se o primeiro pobre.
— Como te chamas? — perguntou-lhe o camponês.
— Padre-Nosso, que estais no céu — respondeu o pobre.
— E o teu sobrenome?
— Santificado seja o vosso nome.
E o pobre foi-se embora com o seu alqueire de trigo.

No outro dia chegou um segundo pobre.
— Como te chamas?
— Venha a nós o vosso reino.
— E o teu sobrenome?
— Seja feita a vossa vontade.
E partiu com o seu alqueire de trigo.

Veio um terceiro pobre.
— Como te chamas?
— Assim na terra como no céu.
— E o teu sobrenome?
— O pão nosso de cada dia nos dai hoje.
E levou o seu alqueire.

Vieram ainda dois pobres sucessivamente, e passou-se tudo da mesma forma, até chegar ao "amém".

Pouco tempo depois o confessor encontrou o aldeão.
— Então já sabes o Padre-Nosso?
— Não, senhor cura. Sei apenas os nomes completos dos pobres a quem emprestei o meu trigo.
— Quais são?

E o aldeão enumerou-os a seguir, e pela ordem em que cada um se tinha apresentado.

— Já vês que não era muito difícil aprender o Padre-Nosso, porque já o sabes perfeitamente.




(Guerra Junqueiro, "Contos para a infância" - Lello & Irmão, Porto, 1953)


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