domingo, 24 de março de 2024

O briguento e sua sombra

Doidos briguentos, capela de La Manta, 1420
Doidos briguentos, capela de La Manta, 1420
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs





Fala para mim se há algo mais pesado que a areia, que o chumbo ou que a massa de ferro.

Sim há. Sabes o que é?

É o homem briguento.

Esse é o pecado mais fátuo, doido e grave que se possa cometer.

E quem fica nele, enquanto não sai desse pecado, não pode se salvar.

Ó briguento, tu és semelhante ao frenético que não respeita ninguém. Esse mataria seu pai, sua mãe e seus irmãos do mesmo jeito que sacrificaria um animal.

E como eu sei disso, posso falar aqui ousadamente e com verdade.

Eu já estive num local em que os próprios religiosos se atacaram para matar uns aos outros.

Vós não percebeis que procedeis pior que os lobos e que os cachorros?

Quereis ver como eu digo a verdade?

Vós podeis vê-la na vossa experiência.

O cão não come a carne de outro cão, tampouco o lobo come a carne de outro lobo, nem mesmo o leão come outro leão, e assim fazem todos os animais.

O briguento age de tal maneira mal que se o irmão, o filinho ou o pai estão contra ele, ele se engenharia para assassiná-los.

Queres ver? Eu quero te contar um exemplo, ó briguento, e tal vez com ele vais pensar melhor.

Houve um louco que caminhava rumo ao oeste e levava uma longa marreta na mão, enquanto que o sol lhe batia nas costas e projetava sua sombra diante dele.

Assim que ele percebeu essa sombra, lhe pareceu que fosse um outro que andava com um bengala na mão como tinha ele.

Então saiu correndo atrás desse outro para lhe dar uma marretada. Porém, a sombra corria do mesmo jeito que ele.

E após ter corrido uma boa distância sem conseguir alcançá-la, ele parou de esgotamento.

Cena de uma revolta camponesa, Jean Froissart  (1337-1405)
Cena de uma revolta camponesa, Jean Froissart  (1337-1405)
Depois se pôs novamente em pé e recomeçou a correr para atingir sua sombra. Até que enfim após correr mais um tanto, chegou a uma curva onde a sombra ficou de lado.

Foi atrás dela até encontrar uma grande pedra onde a sombra tinha ficado ereta e fixa.

Assim que a viu parada com uma bengalona na mão ele foi por cima dela e se assanhou tanto contra sua sombra que acabou se dando uma pancada e rompeu a própria cabeça.

Assim fazem os que brigam. Doidinhos, que por pura insânia quebram sua cabeça e a de todos que estão perto deles!

Ah! Se eu fosse o imperador! Mas me falta o cetro de mando.

Eu os deixaria sem comer. Sim, até que eles abandonem esse pecado. Porque do contrário não se reconciliam jamais e morrem desesperados.

Então, caro briguento. Não queiras te desesperar. Arrepende-te e faz o que eu te ensino.


(Autor: São Bernardino de Siena, “Apologhi e Novellette”, Intratext)



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domingo, 17 de março de 2024

A Ponte do Diabo em Thueyts

Igreja da cidadinha de Thueyts
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs





Em Ardèche, a pequena cidade de Thueyts parece muito calma. Mas essa tranquilidade esconde um terrível segredo.

Na origem dele está uma ponte muito antiga que atravessa o rio Ardèche.

Há muito tempo, um casalzinho de adolescentes de Thueyts ficou secretamente namorado. E combinaram de se encontrar numa pequena mata.

Essa mata era bonita e muito cheia de folhas, mas ficava de outro lado do rio e não havia ponte. A única solução era caminhar três léguas para cruzar pela ponte da cidade vizinha.

A solução era fatigante.

Um belo dia, o rapaz foi até o córrego e tempesteou violentamente dando fortes brados:

‒ “A quem lhe ocorreu fazer este barranco de pedra? Por acaso nós somos amaldiçoados para não termos uma ponte igual que nossos vizinhos? Não é justo!”

“O que te falta para ter a felicidade, meu maravilhoso amigo?”
Subitamente, vindo de não se sabe onde, um curioso personagem aproximou-se do moço louco de sentimentalismo:

‒ “O que te acontece meu amigo”, sussurrou melosamente o desconhecido.

‒ “Bem, nada, apenas um desabafo” respondeu o doido de amor.

‒ “Chega disso meu jovem companheiro. Como é que um rapaz tão belo, tão forte, tão inteligente e tão esperto pode lamentar alguma coisa?”

O moço sentiu o peito estufar.

‒ “O que te falta para ter a felicidade, meu maravilhoso amigo?”, prosseguiu o singular ignoto.

‒ “Nada que tu possas fazer!”, exclamou o inexperiente.

‒ “Você acredita? Eu tenho muitos colegas que me ajudam com frequência, e nada me é impossível!” gracejou o forasteiro.

‒ “Uma ponte! Eu quero uma ponte! Aqui! Onde nós estamos! Mas, isso é uma tarefa impossível”, gemeu exasperado o jovem seduzido.

‒ “Ohhhh, só isso! Não há nada mais fácil!”

O bisonho galante não era tão bobo e percebeu que aquela figura esquisita era um enviado satânico. Mas, ele quis mostrar perspicácia e respondeu:

A ponte do conto, Thueyts
‒ “Eu acho que você quer me pedir algo em troca, ide satanizar outro, bom homem”, disse achando ter feito um belo jogo de palavras.

‒ “Nada disso, eu só tenho vontade de vos agradar”.

‒ “O quê?” falou surpreso o jovem melado.

‒ “Agora eu tenho que partir. Já é tarde, mas eu voltarei”, murmurou o ser misterioso com voz que parecia sair de um túmulo.

Alguns dias depois, os habitantes de Thueyts descobriram uma ponte que atravessava magnificamente o rio Ardèche. Os apressados amantes foram os primeiros a testá-lo. Porém, nunca voltaram.

Desde aquele dia, o povo está convencido que os casais adolescentes que o atravessam desaparecem.

Alguns pensam no diabo. O pároco lembra sempre aos fiéis que Deus pune aqueles que alimentam amores ilegítimos.

E nas noites em que o vento bate com força, os velhos habitantes dizem ouvir os gemidos dos precitos no inferno.



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domingo, 10 de março de 2024

Não entendia as pregações

Santo Antônio do Deserto. Burgos, Espanha
Santo Antônio do Deserto. Burgos, Espanha
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
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Houve um santo ermitão que morava numa pobríssima cabana na floresta.

Ele mantinha um pobre servidor que não retinha nada dos ensinamentos que ouvia.

E por isso nunca assistia a pregação alguma.

Ele contou então ao santo anacoreta a causa pela que nunca ia à missão ou à catequese qualquer que fosse:

— “Eu não consigo guardar nada do que ouço”.

Então o santo ermitão lhe disse:

— “Pega essa panelinha”.

Porque ele tinha uma panelinha para cozinhar o peixe, e lhe disse:

— “Põe água a ferver. Quando a água estiver fervendo joga um pouco na panelinha que está toda engordurada”.

E o rústico fez o que ele mandou.

— “Vai, joga tudo fora sem deixar nada”.

Assim fez o serviçal. E o ermitão lhe disse:

— “Agora olha se ela está gordurenta como estava antes”.

O servidor tapado disse que de fato estava menos engordurada.

São Bernardino de Siena foi autor de muitas fábulas moralizadoras. Benvenuto di Giovanni (1436 - 1509-1518)
São Bernardino de Siena foi autor de muitas fábulas moralizadoras.
Benvenuto di Giovanni (1436 - 1509-1518)
Então o ermitão voltou a dizer:

— “Acrescenta mais uma um pouco de água fervendo e joga-a fora”.

Ele o fez. E ficou ainda mais limpa.

E lhe ordenou agir da mesma maneira diversas vezes. E de cada vez a panelinha estava mais limpa.

Por fim, o santo ermitão lhe disse:

— “Tu falas que não reténs nada na cabeça! Sabes por quê? Porque tu tens tua mente engordurada como estava a panela.

“Vai e enche-a de água e verás que logo tua mente se purificará.

“E acrescenta mais um pouco. E quanto mais, ela mais limpa ficará.

“Quanto mais vezes ouvirás a palavra de Deus, tanto mais tua mente se desentupirá.

“E quanto mais limpa ficar, tanto mais compreenderás a palavra de Deus.

“No fim, tua mente estará inteiramente limpa e purificada sem sujeira nem coisa feia alguma”.



(Autor: São Bernardino de Siena, “Apologhi e Novellette”, Intratext)



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domingo, 25 de fevereiro de 2024

A folgança e a honra não partilham moradia

Luis Dufaur
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Uma vez o conde Lucanor voltava muito cansado, sofrido e pobre de uma batalha.

Porém, antes que pudesse descansar, chegou-lhe a notícia de que se preparava mais uma guerra.

Muitos dos seus o aconselharam a descansar por certo tempo. Só depois poderia decidir o que achasse mais conveniente.

O conde perguntou a Patrônio sua opinião sobre este assunto.

Patrônio lhe disse:

— Senhor, para que possais fazer o melhor e mais conveniente, gostaria muito de vos contar a resposta que deu certa vez o conde Fernán González a seus vassalos.

O conde perguntou a Patrônio o que lhes tinha dito.

— Senhor conde – contou Patrônio – quando o conde Fernán González venceu ao rei Almanzor em Hacinas, muitos de seus soldados morreram e muitos dos sobreviventes, inclusive ele próprio, receberam graves feridas.

Antes que pudessem ser curados, soube o conde que o rei de Navarra ia atacar suas terras. Por isso, ordenou aos seus a se aprontarem para lutar contra os navarros.

Seus soldados lhe responderam que os cavalos estavam cansados, que eles também estavam, e que embora isso não os impedisse de entrar em combate, não devia fazê-lo, porque ele e todos os demais estavam malferidos, pelo que convinha aguardar até que todos estivessem curados.

Sepulcro de Fernán González tendo junto dois pendões de Castela
Quando o conde viu que todos reusavam a luta, dirigiu-se a eles com estas palavras, valorizando mais a honra que o cansaço:

— Amigos, não abandonemos a empresa por causa das feridas, pois as novas que agora nos causarão, farão com que nos esqueçamos das recebidas em Hacinas, diante do mouro Almanzor.

Vendo os seus que o conde não se preocupava nem com o cansaço nem com as feridas para defender sua honra e sua terra, marcharam junto com ele.

O conde e seus soldados ganharam essa nova batalha e saíram vitoriosos.

Vós, senhor Conde Lucanor, se quiserdes fazer o que se deve para defender os vossos, as vossas terras e elevar a vossa honra, nunca sintais a dor, as fadigas ou os perigos, mas agi de maneira que os novos perigos e dores vos façam esquecer os passados.

O conde viu que esse exemplo era bom, seguiu-o e lhe foi muito bem.

E julgando o Infante Don Juan que este conto era muito bom, mandou guardá-lo neste livro e acrescentou os versos que dizem assim:

Tende isto por certo, pois é verdade provada:
que a folgança e a honra não partilham morada.






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domingo, 18 de fevereiro de 2024

Os sete dons que Deus dá, os deu antes à sua Mãe

Nossa Senhora, Menino Jesus e Santos. Simone dei Crocefissi (Bolonha c. 1330 - 1399) Museu do Louvre
Nossa Senhora, Menino Jesus e Santos.
Simone dei Crocefissi (Bolonha c. 1330 - 1399)
Museu do Louvre
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
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Os sete dons que Deus dá, à sua Mãe os deu já.

É desses sete dons que vos quero falar, e de como os deu à sua Mãe, de acordo com todos os que ouvi, para que sejam dispostos a servi-la, se guardem de pecar, que assim fazendo o bem fazem.

Os sete dons que Deus dá, à sua Mãe os deu já.

O primeiro destes sete dons é para saber como a Deus causar prazer; Àquele que Santa Maria teve em si, para Deus assumir n’Ela a carne com a qual nos julgará.

Os sete dons que Deus dá, à sua Mãe os deu já.

De entendimento muito grande é o segundo; mas esse Santa Maria teve em si, porque Deus fez d’Ela sua Mãe, e por meio d’Ele desde os céus sua graça nos envia a nós cá.

Os sete dons que Deus dá, à sua Mãe os deu já.

O terceiro é de conselho; com muita grande razão Santa Maria teve; pois de todas as mulheres que houve e haverá nenhuma teve tanta bênção de Deus como Ela teve, e nenhuma outra terá.

Os sete dons que Deus dá, à sua Mãe os deu já.

O quarto é a fortaleza; e Ela a teve em si tão grande, que o demônio perdeu seu poder desde o momento em que Deus se fez carne n’Ela e se fez homem.

Os sete dons que Deus dá, à sua Mãe os deu já.

O quinto é o dom de ciência, que a Virgem Santa Maria teve grande a ponto de responder bem quando o anjo lhe disse que ela seria Mãe de todo bem, e Ela disse: “Serei sua serva”.

Os sete dons que Deus dá, à sua Mãe os deu já.

O sexto é o dom de piedade e que Ela teve em tal grau que todos nas grandes tribulações apelam a Ela e apelarão, e porque em Santa Maria os pecadores têm uma advogada ante Deus, e assim por sempre será.

Os sete dons que Deus dá, à sua Mãe os deu já.

O sétimo destes dons é ter de Deus temor; esse teve a Gloriosa, mas sempre com amor; e por isso foi Ela a Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, Deus e Homem, que por sempre reinará.

Os sete dons que Deus dá, à sua Mãe os deu já.

Por isso, em virtude desses sete dons lhe devemos louvores e roguemos a Ela que nos faça perdoar por seu Filho nossos pecados, e nos evite cair, de maneira que em seu reino vivamos pelos séculos dos séculos.

Os sete dons que Deus dá, à sua Mãe os deu já.


Vídeo: Cantiga 418. "Os sete dões que dá Deus, os deu antes à sua Mãe"