domingo, 29 de janeiro de 2023

O sacerdote orgulhoso

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs




Em velhos dias, havia na Irlanda grandes escolas, nas quais toda sorte de conhecimentos eram ministrados ao povo, e mesmo os mais pobres tinham mais instrução naquela época do que têm hoje os cavalheiros.

Mas, no que se refere aos sacerdotes, sua instrução era das muito altas, de forma que a fama da Irlanda correu todo o mundo, e vários reis de terras estrangeiras costumavam mandar seus filhos até a Irlanda para serem educados nas escolas irlandesas.

Naquele tempo havia um meninozinho que freqüentava uma dessas escolas, e era uma maravilha para quantos o conheciam, pela sua inteligência.

Seus pais não passavam de pobres trabalhadores. Apesar de jovem e pobre, nem filho de rei nem filho de senhor poderia competir com ele em instrução. Os próprios mestres sentiam-se envergonhados, pois quando estavam tentando ensinar-lhe, o menino dizia-lhes coisas que eles jamais tinham ouvido antes, mostrando assim a ignorância deles.

Um de seus grandes sucessos era a argumentação. Ele insistia até provar que o preto era branco, o que levava o interlocutor a desistir, pois ninguém conseguia derrotá-lo na conversa.

Depois ele dava voltas, e mostrava que o branco era preto, ou mesmo que no mundo não havia cor alguma. Quando cresceu, seus pobres pais tornaram-se tão orgulhosos dele que resolveram fazê-lo sacerdote. Conseguiram-no finalmente, embora quase morressem de fome para arranjar o dinheiro.

Não havia na Irlanda outro homem assim instruído, e continuava a ser grande argumentador, como sempre, de forma que ninguém podia enfrentá-lo. Mesmo os bispos tentaram conversar com ele, mas imediatamente o sacerdote mostrou-lhes que eles nada sabiam.

Naquele tempo não havia professores leigos, e eram os sacerdotes que instruíam o povo. Sendo aquele homem o mais inteligente da Irlanda, todos os reis estrangeiros mandaram-lhe seus filhos.

Assim, o homem fez-se muito orgulhoso, e começou a esquecer de quão baixo viera, e — pior do que tudo — a esquecer mesmo Deus, que fizera dele o que era.

A vaidade de argumentar dominou-o, de forma que, passando de uma coisa para outra, chegou ele a provar que não havia Purgatório, e portanto não havia Inferno, e portanto não havia Céu, e portanto não havia Deus.

Por fim, declarou que os homens não tinham alma, não eram mais do que um cão ou uma vaca, e terminavam quando morriam.

— Quem já viu uma alma? — dizia ele. — Se alguém puder mostrar-me uma, eu acreditarei.

Ninguém poderia dar resposta a tais palavras. Por fim, terminaram todos por acreditar que não havia outro mundo, e que toda a gente podia fazer aqui quanto entendesse.

Ele mesmo deu o exemplo, pois tomou uma bela jovem por esposa. Mas, como não encontrou em todo o país sacerdote ou bispo que o casasse, foi obrigado a oficiar o seu próprio casamento. Foi aquilo um grande escândalo, entretanto ninguém ousou dizer uma palavra, pois todos os filhos de reis estavam do lado dele, e teriam matado quem quer que tentasse impedir aqueles atos errados.

Pobres rapazes! Acreditavam nele, e supunham que todas as suas palavras fossem verdadeiras. Dessa maneira, aqueles pontos de vista começaram a espalhar-se.

O mundo todo ia pelo mau caminho, quando uma noite um anjo desceu do Céu e disse ao padre que lhe restavam apenas vinte e quatro horas de vida.

Ele começou a tremer, e pediu mais um bocadinho de tempo. Mas o anjo foi rígido, e disse-lhe que tal coisa não poderia ser.
— Para que desejas tempo, pecador? — perguntou ele.
— Oh! Senhor, tem piedade de minha pobre alma! — insistiu o sacerdote.
— Oh! não! Então tens uma alma? — perguntou o anjo. — Dize-me, por favor: como foi que descobriste isso?
— Ela tem estado adejando em mim, desde que apareceste. Que louco fui em não pensar antes nisso.
— Realmente, um louco — respondeu o anjo. — De que adiantava toda a tua instrução, se não sabias que eras dono de uma alma?
— Ah! meu senhor, se tenho que morrer, dize-me quando chegarei ao Céu.
— Nunca! Negaste a existência de um Céu.
— Então, meu senhor, poderei ir para o Purgatório?
— Também negaste a existência de um Purgatório. Deves ir diretamente para o Inferno.
— Mas, meu senhor, também neguei a existência do Inferno — respondeu o sacerdote — e dessa forma para ali também não me podes mandar.

O anjo ficou um tantinho perplexo.
— Bem — disse ele — vou contar-te o que posso fazer por ti. Poderás agora viver na Terra durante cem anos, gozando de todos os prazeres, e depois ser atirado ao Inferno, pela eternidade. Ou podes morrer dentro de vinte e quatro horas, entre os mais horríveis tormentos, e passar através do Purgatório, ali ficando até o Dia do Julgamento. Isso, se puderes encontrar uma pessoa que acredite. Através dessa crença, a misericórdia te será concedida, e tua alma se salvará.

O sacerdote não levou cinco minutos a resolver.
— Prefiro a morte dentro de vinte e quatro horas — disse ele — para que assim minha alma seja finalmente salva.

Ouvindo isso, o anjo instruiu-o sobre o que devia fazer, e deixou-o.

Imediatamente o sacerdote entrou numa grande sala, onde todos os letrados e os filhos de reis estavam reunidos, e disse-lhes:
— Dizei-me a verdade, e não temais contradizer-me. Dizei-me qual é a vossa crença: os homens têm almas?
— Mestre — responderam eles — houve um tempo em que acreditávamos que os homens tivessem alma, mas graças aos teus ensinamentos, já não cremos nisso. Não há Inferno, não há Céu e não há Deus. Esta é a nossa crença, pois foi assim que nos ensinaste.

Então o sacerdote ficou lívido de pavor, e exclamou:
— Ouçam! Eu vos ensinei uma mentira! Há um Deus, e o homem tem uma alma imortal. Acredito agora em tudo que antes neguei.

Mas as gargalhadas elevaram-se, dominando a voz do sacerdote, pois pensaram que ele apenas os estivesse provocando, para que argumentassem sobre o assunto.
— Prova isso, mestre — exclamaram. — Prova isso. Quem jamais viu Deus? Quem jamais viu a alma?

E o aposento estremecia com as risadas. O sacerdote levantou-se para responder-lhes, mas não conseguiu dizer uma só palavra. Toda a sua eloqüência, todo o seu poder de argumentação o haviam abandonado, e ele nada mais pôde fazer senão torcer as mãos e gritar:
— Há um Deus! Há um Deus! O Senhor tenha piedade de minha alma!

Todos começaram a zombar dele e a repetir as próprias palavras que o sacerdote lhes ensinara antes:
— Mostra-nos, mostra-nos teu Deus.

Ele fugiu dali, gemendo de angústia, pois sabia que ninguém era crente. Assim, como poderia salvar sua alma? Pensou em seguida na sua esposa.
— Ela acreditará — disse consigo mesmo. — As mulheres nunca abandonam Deus.

E foi ao encontro dela. Mas a esposa disse-lhe que só acreditava naquilo que ele próprio lhe ensinara, e que uma boa esposa devia acreditar primeiro em seu marido, acima e antes de todas as coisas do Céu ou da Terra.

Então ele desesperou-se e correu para fora de sua casa, começando a perguntar a todos que encontrava se eles acreditavam. A mesma resposta, porém, veio de cada qual:
— Acreditamos apenas naquilo que nos ensinaste.

A sua doutrina se havia espalhado amplamente pela região.

Então ele ficou meio louco de medo, pois as horas iam passando, e atirou-se ao chão, num ponto deserto, chorando e gemendo de terror, já que o tempo corria e ele teria de morrer. Foi então que uma criancinha aproximou-se dele.
— Deus vos salve — disse-lhe a criança.

O padre teve um sobressalto.
— Acreditas em Deus? — perguntou ele.
— Vim de um país longínquo para me instruir sobre Ele — disse o menino. — Quererá o senhor indicar-me qual a melhor escola que existe nesta região?
— A melhor escola e o melhor professor estão aqui perto — disse o padre, dando seu próprio nome.
— Oh! Esse homem, não! Sei que ele nega Deus, o Céu, o Inferno, e até mesmo que o homem tenha alma, pois não se pode vê-la. Mas eu hei de vencê-lo bem depressa.

O padre olhou ansiosamente para ele.
— E como?
— Bem, eu lhe perguntarei se acredita que tem vida, e pedirei que me mostre a sua vida.
— Mas ele não poderá fazer isso, meu menino. A vida não pode ser vista. Nós a possuímos, mas ela é invisível.
— Então, se temos vida, embora não a possamos ver, podemos também ter alma, embora ela seja invisível.

Quando o padre ouviu a criança falar daquela maneira, tombou de joelhos diante dela, chorando de alegria, pois agora sabia que sua alma estava segura. Encontrara finalmente alguém que acreditava.

Contou ao menino toda a sua história, toda a sua maldade, orgulho e blasfêmias contra o grande Deus, e como o anjo viera ter com ele e dissera-lhe qual a única forma de salvação, através da fé e das orações de alguém que acreditasse.

— Agora — disse ele ao menino — toma este canivete e enterra-o no meu peito, e continua a golpear minha carne até que vejas o livor da morte em meu rosto. Então observa, pois verás algo de vivo que se destacará de meu corpo quando eu morrer, e saberás que minha alma subiu à presença de Deus. Quando vires isso, apressa-te e corre até minha escola, chama meus alunos para que vejam como a alma de seu mestre deixou o corpo, e que tudo quanto eu lhes ensinei era mentira, pois que há um Deus que castiga o pecado, e um Céu e um Inferno, e que o homem tem uma alma imortal, destinada à felicidade eterna ou à eterna desgraça.
— Rezarei — disse a criança — para ter a coragem de executar esse trabalho.

Ajoelhou-se e orou. Então levantou-se, tomou o canivete e enterrou-o no peito do sacerdote, e enterrou-o e enterrou-o outras vezes, até dilacerar-lhe a carne. O sacerdote ainda vivia, embora a agonia fosse horrível, pois não podia morrer antes que expirassem as vinte e quatro horas.

Por fim a agonia pareceu cessar, e a imobilidade da morte instalou-se no rosto dele. Então a criança, que estava observando, viu uma bela criatura viva, com quatro asas de uma brancura de neve, sair do corpo morto daquele homem e ficar flutuando em torno da cabeça dele. Correu e trouxe os estudantes, e quando eles viram aquilo, ficaram sabendo que se tratava da alma de seu mestre. E observaram, com espanto e temeroso respeito, até que ela desaparecesse a seus olhos, confundindo-se com as nuvens.

Mas as escolas da Irlanda, depois dessa ocasião, ficaram bastante despovoadas, pois o povo dizia:
— Que adianta ir para tão longe, estudar, quando o homem mais sábio da Irlanda não sabia que é dono de uma alma, até o momento em que estava para perdê-la, e só foi salvo através da singela crença de uma criancinha?

("Maravilhas do conto popular", Cultrix, SP, 1960)


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Um comentário:

  1. Olá Luis, amei o seu blog já sou sua seguidora. Gosto muito de contos e lendas. Mande alguma para eu postar no meu blog.
    Abraços.

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